Neste caso, como sempre, justificado por um surto.
Graça Santos
http://www.palmares.gov.br/2013/08/entre-o-indizivel-e-o-narravel-palavras-possiveis-para-yamukumbi-farol-para-as-culturas-negras/
Entre o indizível e o narrável: Palavras possíveis para Yá Mukumbi, farol para as culturas negras
terça-feira, 6 / agosto / 2013
“É surpreendente que se tenha tão pouco a dizer justamente a respeito de acontecimentos tão extremos. A linguagem humana foi inventada para outros fins.” – Ruth Klüger
Se não há lugar no simbólico, não vai
existir narrativa capaz de recobrir os acontecimentos humanos, restando
apenas as marcas indeléveis da experiência traumática. Os assassinatos
de dona Vilma Santos de Oliveira,66, a sempre querida Yá Mukumbi, de sua
mãe, Alial de Oliveira dos Santos, 86, e neta, Olívia Santos de
Oliveira,10, em uma investida psicótica de um vizinho no último sábado,
3, em Londrina, é um desses terríveis episódios traumáticos que
alojam-se além da capacidade de qualquer nomeação, das possibilidades de
representação. As palavras resistem às tentativas de conferirmos
sentido ao ocorrido e como toda experiência traumática, a perda brutal
de Yá Mukumbi e parte de sua família deixam feridas abertas na memória
coletiva e abrem um flanco para questionamentos irrespondíveis: Por que
aconteceu? Por que elas? Como uma mulher da estatura de dona Vilma tem
sua vida interrompida por um homem inteiramente tomado de surto
psicótico, conforme atestou laudo médico? De onde vem desmedida loucura?
Houve fundamento religioso no bárbaro ataque? Acrescente-se à tragédia
na casa de mãe Vilma, o fato de que minutos antes, o assassino cometera
uma outra, matando a própria mãe, num forte prenúncio de que quando se
mata a própria mãe tudo o mais é possível. Um crime só contra mulheres,
velhas e nova, de quatro gerações, perpetrado por um homem em trajes
menores de posse de uma faca.
Emborasucedam-se casos semelhantes ao
ocorrido na Rua Olavo Bilac, no fatídico dia 3, o horror que cada
história singular evoca é sempre sem par. Não existem parâmetros nem
reincidências com os quais podemos nos apaziguar em termos narrativos.
Comoção, perplexidade, dor, vazio, revolta, nos assaltam sem podermos
sequer acomodar o luto, que parece se arrastar indefinidamente. O que
nos resta, então, num “cenário de terra arrasada”?
Os estudos psicanalíticos nos ensinam que embora o trauma habite o campo do indizível, impõe-se a necessidade dese tecer uma narrativa do depois, um discurso que rearranje o que ficou fora de lugar, de se produzir um efeito de tempo,
uma (res)significação do choque, a deflagração incontornável de um
processo de reconstrução. Qual seria, então, a narrativa possível? Quais
as possibilidades de representação do inominável?
A vida plena, a vida digna, a vida
austera sem ser pesada, a vida terna, a vida leve, a vida lúdica, a vida
comprometida, a vida engajada, a vida vivida de Yá Mukumbi – uma vida
desproporcional ao seu desfecho – nos restitui a possibilidade de contar
uma história e construir memória sobre ela, sua mãe e neta.
Mãe Vilma ou Yá Mukumby Alagangue, nome
de origem quimbundo, movimentava-se sobre um largo espectro: zeladora do
terreiro do Ylê Axé Ogum Mege, militante histórica do movimento negro
de Londrina, mulher altiva, integrante de fóruns e associações locais e
nacionais, coordenadora do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade
Racial, cantora de estirpe, dona de uma voz altissonante, mãe de seis
filhos, cozinheira de mão cheia, gestora cultural e política dos
expedientes da população negra, convicta defensora das cotas raciais
para jovens negros nas universidades públicas (protagonizou a
implantação das cotas na Universidade Estadual de Londrina, em 2005, e
manteve-se fiel a luta ao engrossar as fileiras pela manutenção desta
política, em 2011), generoso ser humano, diuturnamente atenta àqueles
que vivem nas franjas da sociedade,construiu um biografia sólida,
sagrou-se pessoa extraordinária, sempre pôs-se acima do banal. A
densidade e força que lhe eram peculiar renderam-lhe um livro “Yá
Mukumbi: a vida de Vilma Santos de Oliveira”, escrita por professores e
estudantes da Universidade Estadual de Londrina (UEL), em 2010.
Do lugar em que via o mundo, a partir de
múltiplos prismas, não abriu mão de princípios éticos e de justiça para
combater o racismo, o sexismo e a intolerância religiosa. Do alto de
sua sabedoria, sabia “converter” jovens para o combate contra a
discriminação racial ofertando a eles possibilidades de tecerem um
trajetória vinculada à ética, ao bem fazer e ao bem viver. Sempre pronta
para as lides dos movimentos negros, deixava um lastro de esperança
para aqueles que supunham estar tudo ou quase tudo perdido. Nunca se
omitia frente às injustiças e problemas sociais e, habitualmente, se
lançava de maneira proativa para equacionar os dramas de quem dela se
aproximava. Crianças, para ela, era patrimônio de primeira linha; delas,
costumava dizer, tínhamos o compromisso de cuidar. O abate de sua neta
de dez anos confere à tragédia, por esses e outros motivos, uma carga
ainda mais brutal.
Consagrada figura pública, Yá Mukumbi
prestou serviço para o Estado brasileiro, fez sua voz ecoar no ambiente
acadêmico, desarmou teorias caducas para pensar a sociedade, atraiu a
atenção de figuras públicas, como Gilberto Gil, que pediu-lhe artigo
para uma publicação; mantinha vínculos afetivos com tantas outras, a
exemplo de Dona Zica. Inegavelmente, esta mestra fincou raízes para
substantivas mudanças sociorraciais, ampliou o escopo das culturas
negras, protegeu e salvaguardou o patrimônio africano no Paraná,
construiu fronteiras para a manutenção das manifestações artísticas
orientadas pelo protagonismo do negro, sem, contudo, erguer
delimitações, tampouco promover distinções e exclusões. Direta e
indiretamente, reorientou as políticas públicas no campo da cultura e da
religião…
A Fundação Cultural Palmares (FCP)
prestou-lhe singela homenagem em 2008. Na época, como agora, sabia do
alcance das práticas de Yá Mukumbi. Sente-se, como todos, imersa em uma
experiência por ora dolorosa, em que o poder público se apequena com a
perda de uma gestora cultural imprescindível. Mas, acredita-se: no
horizonte do possível, torna-se compromisso inadiável da FCP e outras
instituições pinçar, do oceano de iniciativas de Yá Mukumbi,
referências e práticas para a emancipação da sociedade, livre de
racismos, sexismos, intolerância religiosa.Entre o irrepresentável da
tragédia e o narrável da esperança, fiquemos com esta última
possibilidade, virtude que mãe Vilma sempre nos legou e continuará assim
fazendo.
Rosane da Silva Borges
Coordenadora geral do CNIRC (Centro Nacional de Informação e Referência da Cultura Negra)/ Fundação Cultural Palmares/MinC
Professora da Universidade Estadual de L
Nenhum comentário:
Postar um comentário