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A branquitude está nua
emPreconceito
11 de setembro de 2013
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Por
Ana Maria Gonçalves para as
Blogueiras Negras
Dada a velocidade com que consumimos novas informações, os assuntos
abaixo parecem ultrapassados; mas não são. Sempre atuais, tendem a
ocupar mais espaço nas nossas vidas e nos noticiários na proporção em
que mais negros ocupem espaços nos quais não eram vistos anteriormente. E
isso não significa necessariamente que o racismo esteja aumentando, mas
que lhe são dadas mais oportunidades de se manifestar, quando negros
estão em situação de igualdade ou superioridade social ou econômica em
relação a brancos. Acontece no Brasil e em qualquer lugar do mundo cuja
economia já foi baseada em regimes escravocratas e/ou que agora tenta
lidar com o impacto das novas correntes migratórias, principalmente as
originárias de ex-colônias africanas. O que vemos manifestado nessas
situações de racismo e xenofobia, além do ato em si e sua negação, é o
desconforto do sujeito diante do espanto causado pela falha de sua
invisibilidade. Quando pegas em um ato ou uma fala racista, as pessoas
dizem que foram mal interpretadas e que não esperavam tal repercussão,
pois até então se sentiam seguras, escondidas atrás de sua branquitude. E
aqui uso o conceito de branquitude de Ruth Frankenburg, como sendo
“um
lugar estrutural de onde o sujeito branco vê aos outros e a si mesmo,
uma posição de poder não nomeada, vivenciada em uma geografia social de
raça como um lugar confortável e do qual se pode atribuir ao outro
aquilo que não atribui a si mesmo”. Algumas análises sobre a atuação
do ministro Joaquim Barbosa no STF e sobre as reações à vinda ao Brasil
de médicas cubanas negras são bons exemplos dessa quebra de paradigma.

Brasileiros vaiam médico cubano na chegada ao aeroporto
Não me espantou a indignação do jornalista Ricardo Noblat na nota “
Que geração de jovens é esta?“. Para ilustrá-la, ele colocou a
foto de um médico cubano negro sendo vaiado por jovens médicos brasileiros e escreveu:
“A foto abaixo é emblemática de uma situação que deveria nos fazer corar e refletir.” E terminou com as exclamações:
“Vergonhoso! E imperdoável!”
Sim, a foto é emblemática, porque não podemos deixar de notar a
negritude do médico. E é mais emblemático ainda que Ricardo, ao ilustrar
a nota com a foto de um médico negro, não vê incoerência entre sua
condenação dos médicos brasileiros e sua atitude em um
artigo escrito havia menos de 10 dias, no qual ataca o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Joaquim Barbosa:
“Para entender melhor Joaquim acrescente-se a cor – sua cor.” Na nota sobre os médicos, Ricardo ainda pergunta
“Que geração de jovens é esta?”, como
se não soubesse a resposta, como se não estivesse tratando de uma
geração que, assim como ele, reagia aos médicos cubanos acrescentando a
cor – a sua cor. A geração hipocritamente criticada por Ricardo é filha,
neta, bisneta e tataraneta daquelas outras gerações que, protegidas
pela branquitude, acham que podem julgar negros tendo como base a cor.
Essa geração não nasceu por combustão espontânea, mas cresceu vendo
parentes, amigos, cônjuges e formadores de opinião questionarem o que
consideravam ousadias de negros com frases do tipo
“quem esse negro/essa negra pensa que é?”, do mesmo modo que o jornalista Ricardo começa seu artigo perguntando
“Quem o ministro Joaquim Barbosa pensa que é?”. Para
mais tarde nos lembrar que, para respondermos essa pergunta, não
devemos esquecer a cor. Sempre a cor, e sempre a do outro. A do negro.
Faço questão de chamar o jornalista do texto racista citado acima de
Ricardo, apenas. Porque é óbvio que ele, ao escrever seu texto, sabia
que aos escravos trazidos para o Brasil era negada a manutenção do nome e
sobrenome, assim como a linhagem e a ancestralidade, cortando as raízes
de sua árvore genealógica. Ricardo faz isso com Joaquim Barbosa,
chamando-o apenas de Joaquim. Procurem outros textos nos quais ele
critica os ministros brancos do STF e verão que a nenhum deles o
sobrenome foi negado. E a nenhum deles a invisível branquitude é posta
como condição primordial para lhes entender o caráter. Apenas a Joaquim
Barbosa, aquele que não pode ser entendido a não ser como eterno
escravizado à herança histórica de sua cor. Se chegar a ler esse texto,
Ricardo com certeza vai negar que era essa a intenção, porque não tinha
pensando nisso. Não precisa pensar; e essa é uma das maiores artimanhas
do racismo: está internalizado, naturalizado. Ricardo acha que pode
dispensar ao negro Joaquim Barbosa o tratamento que neste último é
condenado. Ricardo acha que pode ensinar ao negro Joaquim Barbosa como
se comportar em sociedade. Ricardo acha que pode manifestar publicamente
seu racismo quando o negro Joaquim Barbosa não age como o poço de
candura e gratidão que deveria ser inerente aos negros ocupando posições
de destaque.
O mesmo ato cometeu o jurista, professor e ex-desembargador do TJ-SP, Walter Maierovich, em um
artigo na revista Carta Capital, no qual chama Joaquim Barbosa de
“o magistrado coiceiro”. A tentativa de desumanização é evidente, quando mais adiante o artigo nos diz que a Joaquim Barbosa falta
“o trato urbano e civilizado para assumir a presidência do STF”. Curiosamente, Walter Maierovich também escreveu
artigo condenando a atitude dos médicos brasileiros
“acerca da presença, em território nacional, de médicos estrangeiros”.
O que Walter Maierovich se esqueceu de dizer foi que, na verdade, a
atitude não tem sido em relação a médicos estrangeiros, mas a médicos
cubanos, entre os quais há muitos negros. Pode ter havido, mas não vi
nenhum corredor polonês hostilizando médicos importados na Europa. Estes
são bem-vindos, seguindo a tradição da
política de imigração brasileira
que, por muitos anos depois da escravidão, proibiu a entrada de negros
no território nacional, e que até há bem pouco tempo, dizia:
“Atender-se-á,
na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver,
na composição étnica da população, as características mais convenientes
da sua ascendência européia (sic)
, assim como a defesa do trabalhador nacional.”
O que o ministro Joaquim Barbosa faz (sendo o
único negro no STF),
e o que os médicos cubanos fazem (ao vir exercer a profissão em um país
no qual apenas 2,66% dos médicos são negros), com suas
“características inconvenientes”,
é desafiarem a reserva de mercado exercida pela branquitude nesses
ambientes de trabalho e, pior ainda, desafiarem a imagem que se tem de
pessoas aptas e ocuparem essas atividades. O racismo brasileiro faz com
que não nos espantemos com a quantidade desproporcional de negros
ocupando posições subalternas, e ainda questionemos sua capacidade
quando consegue vencer esse ciclo. Ricardo faz isso em seu texto, e
daqui a pouco volto ao assunto, mas antes queria destacar o “
desabafo”, no Facebook, da também jornalista Micheline Borges: “
Me
perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas tem uma Cara de
empregada doméstica. Será que São médicas Mesmo? Afe que terrível.
Médico, geralmente, tem postura de médico, se impõe a partir da
aparência… (…)”.
É claro que é preconceito, e Micheline Borges já sabia disso,
“desculpando-se” antecipadamente. No entanto, quando o preconceito é
apontado, a jornalista pede que respeitem sua opinião. Para Micheline,
fazer comentário racista é exercer a liberdade de expressão. Mais tarde,
diante da proliferação da postagem e das críticas recebidas, Micheline
deletou seu perfil e deu algumas declarações à imprensa,
justificando-se.
“Eu peço desculpas, foi um comentário infeliz, foi
mal interpretado, era para ser uma brincadeira, por isso peço desculpa
para as empregadas domésticas”, disse em
uma delas.
Não houve pedido de desculpas para as médicas cubanas, provavelmente
porque Micheline Borges pode se dar ao luxo de prescindir de seus
serviços. No entanto, desculpa-se com as empregadas domésticas, de quem,
provavelmente, não quer abrir mão. Em outra
matéria, Micheline tanto reclama de quem a criticou, como se deles fossem o erro -
(…) as pessoas não aceitam o contraditório. Você não tem o direito de expressar a sua opinião, que logo vêm as críticas” - quanto nega o que diz na primeira, praticamente dizendo que não tem do que se desculpar, pois não foi preconceituosa:
“Não agi, de forma nenhuma, com preconceito. Só acho que a aparência conta, sim. Que é algo importante”.

o que é ter “cara de empregada doméstica”?
Micheline Borges tenta disfarçar, empregando exemplo de outros
profissionais que ela considera fundamental que mantenham a “boa
aparência”. Fala em “
Se eu chegar numa consulta e encontrar um médico
com Cara de acabado ou num escritório de advocacia o advogado mal
vestido vou embora”, mas não era disso que ela estava falando quando
se referiu às médicas cubanas. Retrato-me se me mostrarem críticas da
jornalista à aparência das médicas brasileiras que saíram às ruas para
protestar contra o programa Mais Médicos. Quase todas ou praticamente
todas brancas, usando os mesmo jalecos brancos que aparecem em todas as
fotos que vi documentando a chegada das médicas cubanas. Ou seja:
vestiam-se da mesma maneira, portanto não me parece ser um comentário
que leva em conta a questão da roupa, mas da cor mesmo. A atitude da
Micheline é reflexo dos muitos anúncios que todos nós nos cansamos de
ver nos jornais brasileiros, pedindo que os candidatos aos empregos
tivessem “boa aparência”, sinônimo de serem brancos. Para Micheline
Borges, as médicas cubanas não têm “boa aparência” e, portanto, deveriam
ser empregadas domésticas, posição na qual ela deve estar acostumada a
lidar com negros. Posição na qual, do alto de sua branquitude, ela se
sente confortável.
Micheline Borges, assim como boa parte da população brasileira, não
está preparada para médicos e médicas negros, como os que estão se
formando através de ações afirmativas. Aliás, voltando ao texto do
Ricardo, acho que é exatamente sobre isso que ele está falando, pois não
se cansa de nos lembrar que o ministro Joaquim Barbosa foi beneficiado
por ação afirmativa do ex-presidente Lula. E que, na sua opinião, não
teria condições de estar. Por isso, desqualifica-o, embora já tenha sido
até elogioso, mesmo lhe negando o sobrenome, em
artigo no qual fala que o ministro
“atua com a independência que se espera de todo juiz”. Ou quando
ressalta que ”
No
STF não há um único ministro para o qual seja estranha a arte de fazer
política. E todos fizeram para chegar onde estão. Joaquim, não.
Submeteu-se a concursos para conquistar cargos. E não pediu a ajuda de
ninguém para ser promovido a ministro do STF.”, ou
ainda:
“Joaquim
Barbosa tem um notável currículo. O que pesou mais para que virasse
ministro, contudo, foi sua cor. Em certa época, Lula encantou-se por
ministros temáticos – negro, mulher, do Nordeste, do Sudeste.”. Nesse caso podemos deduzir que Ricardo tem a palavra cota em mente, pois a usa no
parágrafo seguinte
para falar de Dias Tóffoli (duplo sobrenome, sempre, mesmo quando
Ricardo poderia ter razões pessoais para pegar pesado): ”Dias Tóffoli
entrou na cota do PT. Dele não se exigiu notório saber jurídico. Por
duas vezes foi reprovado em concursos para juiz.”
Deixo para a
coluna de
Míriam Leitão a defesa da trajetória de Joaquim Barbosa, de quem
Ricardo, respaldado por anônimos, passa a dizer que falta grande
conhecimento de assunto de Direito. É interessante perceber também que,
nesse artigo, o jornalista diz que o “problema” de Joaquim Barbosa
“Não é uma questão de maus modos. Ou da educação que o berço lhe negou, pois não lhe negou“.
Ou seja, não é uma questão de classe, já que todos sabemos do ministro .
É de cor mesmo, principalmente se levarmos em conta o que diz
aqui:
“Foi do pai que Joaquim herdou o temperamento belicoso.” Ou seja, se é exatamente o
“temperamento belicoso” que
Ricardo critica em Joaquim Barbosa ao defender o xará branco de
sobrenome Lewandowski, o contraditório fica bastante explícito. A
coerência não interessa a Ricardo, que quer e acha que pode atacar
Joaquim Barbosa apenas por algo que ele herdou do pai: a cor. A sua cor,
da qual, usando o possessivo de terceira pessoa, Ricardo faz questão de
se afastar.
Pode ser mera coincidência, principalmente porque ele já
negou que
tenha qualquer pretensão, mas é interessante observar essas
contradições de Ricardo exatamente no momento em que se cogita a
candidatura de Joaquim Barbosa para presidente do Brasil. Para afastar
de vez essa hipótese, nada mais fácil do que ressaltar o estereótipo do
homem de “temperamento belicoso”, ou do “angry black man”, que Barack,
como diria Ricardo, soube muito bem evitar, a custo de nunca ser eleito.
Muitas vezes, pecando, inclusive, pelo excesso de cuidado.
Aqui,
aqui e
aqui há
matérias sobre o assunto. Isso me lembra a profecia furada de Gilberto
Freyre, que disse que, no Brasil, um negro tinha muito mais chance de
chegar à presidência da república do que uma mulher. Freyre, como também
prova suas teorias acerca da democracia racial que aconteceria por
wishful thinking, desconsiderou
a profundidade com que o racismo está entranhado na sociedade
brasileira; Ricardo e Micheline, ao dizerem o que disseram e
permanecerem impunes, contaram com ela, mesmo que inconscientemente.
Mas, pelo menos, a gente já vê, critica, aponta o dedo. A branquitude
está cada vez mais nua.