O negro de alma negra: Uma entrevista com Oliveira Silveira
Entrevista inédita dada pelo poeta Oliveira Silveira a jornalista Fernanda Pompeu em junho de 2008
por Fernanda Pompeu *
Junho de
2008. Eu estava na recepção de um hotel no centro de Porto Alegre.
Faltavam três minutos para as 10 da manhã. Sentia uma pequena
apreensão, comum toda vez que aguardo alguém para entrevistar. No caso,
seria um trabalhinho rápido. Precisa apenas de uma ou duas declarações
do entrevistado para ilustrar uma matéria. Como em geral, nós
brasileiros, não primamos pela pontualidade, sentei-me e abri um
exemplar da Zero Hora - o mais afamado jornal gaúcho. Antes de
ler a segunda manchete, olhei para o relógio (10 horas) e,
automaticamente, para a porta de entrada. Então, vi surgir um dos homens
mais elegantes que já vi na vida. Muito magro, vestindo um sobretudo e
apoiando-se em uma bengala. Sem nenhuma senha, trocamos um olhar e
sorrimos. Eu perguntei: "Oliveira Silveira?" Ele estendeu a mão para que
eu a apertasse.
Minutos depois
nos
acomodamos em um café na esquina do hotel. Liguei o gravador, peguei
caderneta e caneta. No lugar de uma declaração, meu entrevistado me deu
uma aula. Começou contando que seu nome inteiro era Oliveira Ferreira da
Silveira, nascido na gaúcha Rosário do Sul (384km de Porto Alegre), no
ano de 1941. Acrescentou que amava as palavras antes e depois de tudo.
"Sou escritor, trabalho mais com poesia. Mas também escrevo prosa, na
forma de ensaios e matérias jornalísticas. Enfim sou uma pessoa da
literatura", sublinhou ao mesmo tempo que fez menção à minha caneta de
tinta verde. Tive certeza do seu amor à escrita, pois apenas escritores
reparam na cor da tinta das canetas. Oliveira Silveira, entre outros
livros, publicou Poema sobre Palmares, Banzo Saudade Negra, Pelo Escuro, Roteiro dos Tantãs, além da participação em várias antologias.
Da literatura, a conversa saltou para o drama dos Lanceiros Negros na
revolta Farroupilha (1835-1845). Os lanceiros, depois de dez anos de
lutas, foram dizimados em uma emboscada. Por quê? Para não serem
alforriados, conforme o que havia sido combinado. "A história da
contribuição dos negros ao nosso país recém-começou a ser contada,
trata-se de um esforço para gerações inteiras". Oliveira continuou "no
final dos anos 1960, senti curiosidade e necessidade de pesquisar o
protagonismo de mulheres e homens negros no Rio Grande do Sul em
particular e no Brasil em geral". Foi então que teve a ideia de reunir
um grupo de interessados. Sem sede, o pequeno grupo, formado só por
pessoas negras, passou a se encontrar na Rua da Praia - a mais querida
rua da cidade (que na placa chama-se Rua dos Andradas). Diga-se de
passagem, cantada nos
versos e nas prosas dos autores gaúchos.
Oliveira seguiu:
"nossas conversas giravam em torno da insatisfação com 13 de Maio,
achávamos que a comemoração, além de chapa branca, homenageava uma
princesa "portuguesa" e não o povo negro. Daí percebi que era preciso
encontrar uma data que fizesse justiça à luta continuada dos negros
brasileiros". Foi o que fez. Atirou-se aos livros, mergulhou na
importância do Quilombo dos Palmares. "É útil recordar que Palmares foi
muito mais do que um quilombo, foi uma reunião de quilombos. Era tratado
ora como república, ora como reino. Começou por volta de 1595 na Serra
da Barriga, Alagoas. Resistiu por quase um século. Nos quilombos,
viveram mulheres, homens, velhos e crianças que conseguiam escapar do
terror escravista. Essa realidade
desmente a bobagem de que os escravizados aceitavam sua submissão".
Durante a
pesquisa, o jovem Oliveira Silveira topou com a data que precisava: 20
de novembro de 1695 - dia e ano da morte do líder Zumbi. "Do dia do
nascimento dele ninguém tem registro". Zumbi é herói tão relevante para
nossa história quanto o alferes Tiradentes. A primeira vez que soube da
data foi num dos fascículo da série Grandes Personagens da História, da Editora Abril. Pesquisador cuidadoso, foi atrás da comprovação. "Confirmei no livroQuilombo dos Palmares de Edson Carneiro, publicado em 1947. Também o historiador português Ernesto Ennes mencionava o 20 de novembro em As guerras de Palmares, de 1938." Mais tarde, Oliveira Silveira conheceria e se
tornaria amigo do historiador gaúcho Décio Freitas, autor do livro Palmares, la Guerrilla Negra, editado no Uruguai. Por empenho de Oliveira, esse trabalho viria a ser publicado, no Brasil, com o título Palmares, a Guerra dos Escravos.
Com o
dia da morte de Zumbi confirmado, Oliveira Silveira partiu para a ação.
Em 1971, em plenos anos de chumbo, fundou o Grupo Palmares. "Na
formação inicial estavam: eu, Ilmo da Silva, Antônio Carlos Cortes,
Vilmar Nunes, Anita Leocádia Prestes Abdad e Nara Helena Medeiros
Soares. Mais adiante, entraram Helena Victória dos Santos Machado e
Marisa de Souza da Silva, grandes intelectuais." Com o grupo
estruturado, decolaram para a longa viagem de publicitação da data.
"Nossa estratégia foi organizar debates em torno de
personalidades negras. A primeira delas foi o escritor, jornalista e
historiador Luís Gama (1830-1882), seguido do abolicionista José do
Patrocínio (1853-1905)", ele recorda e acrecenta que poucas pessoas
compareceram a essas discussões. A época não ajudava, estávamos no auge
da repressão política. Também havia o estranhamento com um grupo de
negros promovendo alta cultura.
20 de
novembro de 1971, no Clube Náutico Marcílio Dias - um dos tantos clubes
frequentados por negros em Porto Alegre - foi realizada uma homenagem a
Zumbi dos Palmares com inteção e inflexão de exaltação da negritude
(palavra ainda não popularizada). "Compareceram umas vinte pessoas, mas
todas da maior qualidade." Oliveira sorri ao recordar o que hoje é uma
anedota saborosa. "Saiu na imprensa que Zumbi
seria homenageado por negros do teatro. O pessoal da censura exigiu que
mostrássemos a eles a programação. No final, o evento ocorreu com
tranquilidade." O que a ditadura e a maior da população não imaginavam
era que aquela reunião de gatos pingados negros e, entre eles, um ou
dois brancos, seria a inuguração de uma data evocativa e de luta,
nascidinha para fazer história. E que história! "Não o chamávamos ainda
de Dia Nacional da Consciência Negra", continuou Oliveira. "O feliz nome
seria dado, sete anos depois, numa assembleia do Movimento Negro
Unificado contra a Discriminação Racial (MNUCRD), pelo ativista Paulo
Roberto dos Santos."
Nos anos
que se seguiram, o desmanche do mito da democracia racial brasileira
ganhou impulso. Mulheres e homens negros começaram a sair dos porões
da história e assumir seus lugares nas salas de vistas. Populações de
origem quilombola foram localizadas e valorizadas, organizações de
mulheres negras levantaram a voz. Foram criados a Secretaria de Promoção
da Igualdade Racial (Seppir) e o Conselho Nacional de Promoção da
Igualdade Racial, do qual Oliveira Silveira foi integrante por notório
saber. "Há muitas conquistas a serem celebradas pelo povo negro e
brasileiro, por exemplo, as cotas. Mas um enorme trabalho precisa
continuar sendo feito a favor da população negra, diz Oliveira.
Pedimos a
conta à dona do café. Desligo o gravador, não por que o poeta, escritor
e ativista tenha dito tudo o que queria, mas por culpa do relógio
marcando o meio-dia. Meu voo para São Paulo seria duas horas depois. No
avião, burlando a
monotonia das nuvens, vim pensando que havia vivido um grande pivilégio
- desses que, às vezes, a vida presenteia. Oliveira Silveira tinha
conversado comigo. Proseado detalhes que futuramente estarão na memória
da história do Brasil. Em primeiro de janeiro de 2009, ouvi pelo rádio
que o inventor do 20 de Novembro havia morrido. O que é uma meia
verdade.
* Fernanda Pompeu é escritora e companheira de viagem do Geledés. Mantém o blog Capim Letrado:
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