Por: Stacey Patton. Fonte: Jornal The Washington Post
Os Estados Unidos não proporcionam os elementos fundamentais da
infância às meninas e meninos negros. A infância dos jovens negros é
considerada naturalmente inferior, perigosa e indistinguível da vida dos
adultos. As crianças negras não merecem a mesma presunção de inocência
que as crianças brancas, em especial em situações de vida ou morte.
Prestem atenção à descrição que o agente de polícia Darren Wilson fez do
seu conflito com o adolescente negro Michael Brown, que estava
desarmado, em Ferguson, no estado de Missouri.
No seu testemunho perante o grande júri, Wilson qualificou Brown como
“demônio” e “agressivo” e que troçara dele quando dissera: “Você é tão
frouxo que não terá coragem para disparar”. Wilson, que mede mais de
1,90 m e pesa 95 quilos, disse ao grande júri: “Senti-me como se fosse
um garoto de cinco anos tentando agarrar o Hulk”. Ele me pareceu enorme e
me senti muito pequeno só de lhe segurar o braço”. Wilson afirmou que,
antes de lhe ter dado um tiro na cabeça, Brown correra em direção a ele
por entre uma chuva de balas. A história dessa noite (9 de agosto 2014)
apresenta o policial Wilson como uma criança branca inocente que se
sentira tão ameaçada por um animal grande e preto que a sua única opção
fora usar a sua arma de serviço.
Ao anunciar a decisão do grande júri de não acusar Wilson, o promotor
público Robert P. McCulloch atacou o caráter de Brown e recordou, com
pormenores macabros, os relatos contraditórios da reação do corpo de
Brown ao disparo. Este tipo de descrições, muito semelhantes às que eram
apresentadas no século 19 em defesa do linchamento, é frequentemente
usado quando uma criança ou um adolescente negro é morto a tiro nos EUA.
Linchamento de negros
Em 1955, depois de Emmett Till, de 14 anos, ter sido espancado e
morto por um grupo de homens brancos, um dos seus assassinos disse que o
adolescente “ parecia um homem”. Encontrei declarações idênticas nas
notícias dos linchamentos de rapazes e moças negros, entre 1880 e o
começo dos anos 50. Testemunhas e jornalistas centravam- se no tamanho
das vitimas, com idades entre os 8 e os 19 anos. Essas vítimas eram
acusadas de ataques sexuais a moças e mulheres brancas, de roubar, de
bater em bebés brancos, de envenenar os patrões ou de lutar com os seus
colegas brancos. Às vezes de proteger jovens negras de ataques sexuais
de homens brancos. Ou eram simplesmente linchados sem motivo.
Em 2013, nas alegações finais do julgamento do segurança George
Zimmerman, que seria absolvido das acusações de homicídio em segundo
grau e de homicídio involuntário do adolescente Trayvon Martin (na noite
de 26 de fevereiro de 2012, em Stanford, Flórida), o advogado de
defesa, Mark 0'Mara, colocou dois bonecos de cartão em tamanho real, em
frente da bancada do júri. Um dos bonecos representava Zimmerman, 29
anos, medindo 1,70 m e pesando mais de 90 kg, e o outro Martin, 17 anos,
com 1,75 m de altura e 71 kg de peso.
Seguido por um “brutamontes sinistro"
O'Mara declarou que esta reconstituição à base de
bonecos de cartão tinha como objetivo ajudá-lo a mostrar a diferença de
altura e peso entre os dois intervenientes na cena. Recorrendo à
animação digital, o advogado tentou convencer os jurados de que o guarda
noturno do bairro, clinicamente obeso, tinha temido pela sua vida
enquanto lutava com Martin, que era 5 centímetros mais alto, e isso
justificaria que tivesse disparado, num ato de legitima defesa, contra o
adolescente. Ao longo do julgamento, a defesa de Zimmerman referiu-se
Martin como um jovem adulto.
Na sua contra-argumentação, o promotor John Guy designou
repetidamente Martin por "rapaz", numa tentativa de restabelecer a sua
juventude e de o mostrar como um adolescente inocente, que temeu pela
vida quando se viu perseguido e depois atacado por um adulto. Guy
perguntou ao júri: “Não será o pior pesadelo de todas as crianças. serem
seguidas por um estranho, na escuridão, a caminho de casa?" Na última
conversa que teve ao celular com a sua amiga Rachel Jeantel, Martin
dissera que estava sendo seguido por um “brutamontes sinistro”.
Naquele julgamento estava em jogo, não apenas determinar a culpa ou
inocência de Zimmerman, mas também se Martin era, ou não, uma criança. O
mesmo voltou a acontecer no caso do disparo mortal contra Tamir Rice,
de 12 anos, a 22 de novembro. Tamir, que foi descrito como sendo “alto
para a idade", brincava nas proximidades de um centro esportivo, em
Cleveland. Ele foi visto sentado, com uma pequena espingarda de pressão
de ar na mão. Numa gravação do 112, uma testemunha disse: “O garoto a
armava e desarmava continuamente. Não era uma arma de verdade, mas ele a
apontava para as pessoas. Devia mesmo ser um garoto”.
Trata-se de uma criança, e não de um adulto
Não se sabe se foi algum funcionário do centro que chamou a polícia,
mas ao responder o chamado o agente policial comentou que provavelmente
se trataria de uma criança brincando com uma espingarda de pressão. De
qualquer forma, alguns policiais foram averiguar. Disseram que ao
encontrar Tamir, o garoto não levantou os braços como eles solicitaram.
Em vez disso, teria levado as mãos à cintura, onde estava a arma. Por
isso foi abatido com vários disparos.
O advogado da família de Tamir, Timothy Kucharski, perguntou aos
agentes policiais por que não atuaram com maior cautela. “A polícia tem
de lidar com essas coisas no contexto adequado. Estamos falando de uma
criança de 12 anos e não de um adulto. Seria natural pensar que vocês
lidariam com crianças de uma forma diferente daquela com que lidam com
adultos. As crianças nem sempre compreendem o que se passa”, argumentou
Kucharski.
“Nesse caso o policial que atirou não fazia ideia de que ele tinha 12
anos", declarou Jeff Folmer, presidente da Associação de Agentes de
Patrulha da Polícia de Cleveland. “Estava mais concentrado nas mãos do
garoto do que na sua idade.”
A superavaliação da idade das crianças negras começa antes mesmo dos l2 anos
Um estudo publicado em 2014 no Journal of Personality and Social
Psychology que, há tempos, publicou estudos racistas sobre crianças
negras - associou a maior utilização da força pela policia contra
crianças negras à percepção generalizada de que, aos 10 anos, estas são
menos inocentes do que as crianças de outras etnias. O estudo citava
igualmente o Serviço de Dados sobre a Educação, segundo o qual,nas
escolas, os alunos negros têm mais probabilidades de serem severamente
castigados do que os alunos com pele de outra cor que cometam as mesmas
infrações.
Independentemente dos casos considerados, a atuação da policia é
invariável e previsível: “não era uma criança, era uma ameaça”, “eu
estava com medo e tive de me defender”. Despojada da sua condição de
criança, o pequeno negro é apresentado como uma ameaça, é essa é a
versão que passa a prevalecer na avaliação jurídica das situações.
Os riscos que as crianças negras enfrentam - de verem o seu perfil
traçado com base na cor e de serem candidatos prioritários à detenção e
ao encarceramento – estão firmemente enraizados na história. Depois da
Guerra Civil (que terminou em 1865), o estabelecimento da igualdade
política para milhões de negros recentemente libertados significava que a
nova geração de crianças negras se tornaria adulta com direitos iguais.
Por isso, depreciar as crianças negras passou a ser fundamental para a
manutenção do racismo e da desigualdade na vida dos norte-americanos.
Na “era Jim Crow" (durante a qual alguns estados do sul publicaram
leis locais segregacionistas) as crianças negras cresceram como cidadãos
e trabalhadores livres. Ao contrário dos seus pais e avós, elas não
tinham memória da escravatura. Surgiram por causa disso novas
estratégias para as confinar, para lançar dúvidas sobre a sua capacidade
intelectual e os seus direitos, para menosprezar o valor do seu
trabalho e, até, delas próprias como seres humanos.
Fetos negros com cérebro menor
Na virada do século 19, a literatura pediátrica americana ainda
incluía artigos de médicos que afirmavam que os corpos das crianças
negras e os corpos das crianças brancas se desenvolviam de forma
diferente. Segundo os investigadores brancos, o feto negro tinha um
cérebro menor, nariz mais largo, lábios mais grossos e mãos e pés
“simiescos". Alguns psicólogos analisaram e compararam os comportamentos
de bebês brancos e negros e concluíram que os bebés negros nasciam
naturalmente inferiores e animalescos.
Através de medições e exames anatômicos do cérebro, médicos e
antropólogos procuraram provar que os lobos frontais das crianças negras
fechavam durante a adolescência. E, quando isso acontecia, os seus
cérebros paravam de evoluir enquanto os seus órgãos genitais cresciam
demais, o que representava uma ameaça sexual para a comunidade branca.
Alguns políticos chegaram a defender abertamente a castração dos rapazes
negros e, na Carolina do Norte, milhares de moças negras foram
esterilizadas à força.
As leis de Jim Crow tiveram efeitos muito mais vastos e nocivos sobre
as crianças negras do que as refregas diárias em escolas e cantinas
segregadas parecem indicar. Como objetos de experiências dos médicos ou
da violência do Estado, bebês e crianças estiveram expostos à lógica
desumanizadora e cruel da classificação e do domínio raciais. Pais e
professores negros tentaram mitigar esses efeitos nocivos e proteger
crianças e jovens. Infelizmente, sofreram mais derrotas do que sucessos,
mas os seus esforços revelam que, na época Jim Crow, até cuidar dos
próprios filhos era motivo de ataque - e por isso tornou -se uma
importante área de resistência.
Enquanto o ciclo de vida dos brancos inclui inocência, crescimento,
civismo, responsabilidade e entrada na idade adulta, a negritude é
caracterizada como a inversão de tudo isso. Por um lado, as crianças
negras são apresentadas como adultas. Por outro, e de forma igualmente
perversa, os adultos negros ficam fechados num limbo de infância, e são
considerados irresponsáveis, malcriados, criminosos e inatamente
inferiores. Através da detenção de adultos negros e da exagerada
colocação de crianças negras em famílias de acolhimento, o Estado age
como pai, mas ao mesmo tempo alija a sua responsabilidade de investir em
crianças de cor. No caso de Ferguson, o Estado declara ostensivamente:
não e' nossa responsabilidade proteger os filhos de vocês.
Quando leem as noticias dos assassinatos de Jordan Davis, Darius
Simmons, Trayvon Martin, Michael Brown, Aiyana Stanley-Jones, Renisha
McBride e tantos outros, os pais negros são obrigados a instilar medo
nos filhos - avisando-os dos perigos que os brancos e a polícia podem
representar. Estas palavras de advertência não bastam para superar os
séculos de atitudes e políticas que estiveram por trás dos assassinatos
de crianças negras por brancos.
Os inúmeros jovens que, nas escolas, nos órgãos de comunicação social
e nas ruas protestam contra a palhaçada mentirosa de Ferguson tentam
garantir que as crianças de cor possam ser crianças - e, também, viver
até serem adultas.