Ativistas negros se organizam para combater a discriminação e obter retratação por séculos de ocultamento histórico na Argentina
Por Mayara Moraes Do
Terra
Quem
caminha pelas ruas de Buenos Aires se torna testemunha do fenômeno de
invisibilização sofrido pela população negra na Argentina. Qualquer
turista desatento não notaria nos rostos de alguns portenhos os sinais
da miscigenação, nem imaginaria que muitos argentinos que se
autodenominam brancos têm ancestrais africanos. Qualquer pessoa negra
sujeita a cruzar-lhe o caminho o faria se perguntar: “Será que ele é
angolano? Senegalês? Ou melhor, brasileiro?
“É muito
doloroso sentir-se um estrangeiro no seu próprio país”, confidencia
Carlos Álvarez, negro, 39 anos, e presidente do coletivo Agrupación
Xangô.
“A Argentina é um país que luta muito pelos
seus desaparecidos, mas os primeiros desaparecidos somos nós”, desabafa
Laura Omega, negra, 43 anos, cantora de jazz e militante independente da
causa afro.
É comum pensar, erroneamente, que na
Argentina não existem negros e descendentes de escravos. A população
afrodescendente é vítima de um processo de ocultamento que é secular e
cruel, e poucos são os que tiveram a oportunidade de conhecer a ignorada
trajetória de seu povo.
“As guerras e as epidemias
não dão conta de explicar esse fenômeno, por isso falamos de
‘desaparecimento artificial’, que está relacionado com a omissão
deliberada da presença negra nos livros, nos meios de comunicação e na
educação”, argumenta Miriam Victoria Gomes, 53 anos, professora de
Literatura Latinoamericana, especializada em Literatura dos Países
Africanos de Língua Portuguesa, e declarada, em 2012, Personalidade
Destacada da Cidade de Buenos Aires no âmbito dos direitos humanos por
sua longa luta contra o racismo. “Creio que a tentativa de ocultar os
negros da história argentina se explica por uma mentalidade racista,
colonial, capitalista e patriarcal”, reforça.
Laura
conheceu suas raízes e o flagelo de seus ancestrais dentro de casa, com a
avó e ex-escrava Laureana Cairo. Na Argentina, a escravidão foi abolida
oficialmente em 1853, mas, como explica Laura, muito escravos não foram
libertados até 1905. Laureana foi um desses personagens. Nascida em
1897, ela teve que fugir das casas dos patrões para ganhar a liberdade,
aos nove anos, após a morte da mãe. E viveu muitos anos para contar a
história de seu povo. Laureana morreu aos 104 anos.
“Não
cansava de escutar as histórias de minha avó. Tive a sorte de ter uma
família consciente, que sempre me dizia ‘Se você não sabe quem é, não
sabe para onde vai’”.
A verdade é que a história
oficial da Argentina se deve à construção seletiva de seu passado a
partir de um processo de inviabilização dos povos africanos, desde o fim
do século 19. Os negros aparecem no imaginário nacional como escravos
que foram dizimados por guerras pela independência e doenças como a
febre amarela. Essa teoria foi reforçada historicamente com a imagem de
uma Argentina branca e europeia, cuja formação e desenvolvimento
acontecem sem a participação do africano e do afroargentino.
“Na
Argentina, arrancaram a nossa espiritualidade, a nossa cultura e o
nosso idioma. O país desconhece sua população afrodescendente. Está
instalada essa ideia de que se você é negro, não é argentino”, denunciam
Álvarez e Laura.
O censo de 2010 foi o primeiro a
incluir uma pergunta sobre afrodescendente. No total, 149.493 pessoas se
auto reconheceram afrodescendentes, tendo 92% delas nascido na
Argentina.
Álvarez, que também é presidente da
Comissão de Afrodescendentes e Africanos do Conselho Consultivo da
Chancelaria, enxerga a inclusão da variável afro no censo nacional como a
vitória de uma luta histórica do movimento afro. “Não estar nas
estatísticas é como não existir. As autoridades diziam que era muito
difícil montar uma agenda política pública dirigida à comunidade
afrodescendente ou africana, porque não sabíamos quantos éramos e onde
estávamos”.
Carlos
Álvarez milita pela causa afro na Agrupación Xangô, Comissão de
Afrodescendentes e Africanos do Conselho Consultivo da Chancelaria e na
Secretaria de Direitos Humanos
Mas há opiniões divergentes sobre o sucesso e os impactos da inclusão da variável afro no censo nacional.
Sandra
Chagas, negra, 40 anos, e presidente do grupo de disseminação da
cultura africana e afrodescendente Movimiento Afrocultural, acredita que
a campanha não despertou grande sensibilização e que a pesquisa não
reproduz a quantidade real de negros vivendo na Argentina. Segundo ela, a
percepção negativa que os argentinos têm da população negra amedrontou
muita gente que se declararia negra, mas que acabou não o fazendo por
temor.
“Além da falta de conhecimento e da falta de
consciência, houve negação por baixa autoestima e por medo. O negro na
Argentina é sujo, o negro é baixo, o negro é uma merda. Como você vai se
identificar com tudo isso? Conheço meninas que deixaram de sair de casa
porque foram chamadas de negra na rua, pessoas negras que se suicidaram
porque foram abusadas ou hostilizadas”.
Sandra Chagas é líder do Movimiento Afrocultural, divulgador da cultura negra em Buenos Aires
Há também quem não foi sequer consultado.
“O
censo foi um fracasso pra mim. Quando vieram a minha casa, eu disse ao
pesquisador: ‘suponho que você tenha uma página onde tenha que anotar a
quantidade de pessoas afrodescendentes e indígenas’. Mas o pesquisador
me revelou que não sabia daquela orientação. Havia três pessoas
afrodescendentes na minha casa e eles não me perguntaram”, revelou
Laura.
“O racismo na Argentina é muito visível e acontece o tempo todo”
Quando perguntados se ainda sentem e sofrem o racismo, Laura, Sandra e
Álvarez não titubeiam em responder: o racismo na Argentina é muito
visível e acontece o tempo todo, não apenas pelo atrevimento, mas também
pela violência e pela impunidade.
“Aqui eles sentem
que podem te dizer qualquer coisa e fazer qualquer coisa com você. Há um
racismo estrutural que tem relação com algumas práticas cotidianas e
com a marginalização provocada pelo processo colonialista”, explica
Álvarez. “Nossas mulheres negras, muitas vezes caminhando, são tidas
como trabalhadoras sexuais”.
“Quando jovem, comecei a
usar saltos e maquiagem. Os homens se aproximavam de mim e perguntavam
quanto eu cobrava. Acabaram com a minha juventude. Nunca mais coloquei
um sapato de salto alto ou me maquiei. É como se toda mulher negra fosse
prostituta”, lembra Laura.
Para a cantora, as
mulheres negras não têm estrutura para bancar que também podem ter os
mesmos direitos que as outras mulheres, e acabam se conformando com a
marginalização.
Laura Omega, cantora e ativista independente
“Muitas
mulheres da minha comunidade tem cinco, seis, até sete filhos, todos de
pais diferentes que sempre abandonam a família. Se uma mulher negra com
sete filhos vai a uma delegacia e diz que um homem branco a violou,
nada acontece. Eles nada fazem”, argumenta.
Filha de
um imigrante de Cabo Verde, que se mudou para a Argentina depois da
Segunda Guerra Mundial, e de uma argentina filha de caboverdianos, que
desembarcaram na Argentina durante a primeira corrente migratória no
princípio do século 20, Miriam Gomes também desabafa.
Miriam Gomes (ao centro) em foto com os pais, de Cabo Verde
“É difícil
ser uma mulher negra na Argentina. Minha luta acontece todos os dias na
sala de aula, conversando com os alunos e tentando conscientizá-los
desse fenômeno. Não é uma situação fácil, incluindo entre aqueles que se
dizem nossos amigos, já que não é possível falar sobre o racismo sem
cair em enfrentamentos ideológicos.”
Laura é neta da ex-escrava Laureana Cairô
A
Agrupación Xangô entregou à Confederação de Trabalhadores de Educação, o
sindicato que reúne o maior número de professores e funcionários de
educação no país, um guia sobre afrodescendentes e cultura afro
para que os docentes tenham material conceitual e político para dar base
a um ensino menos eurocêntrico e mais plural. O projeto tem o objetivo
não apenas de resgatar a história e a cultura negras na Argentina, mas
também de promover a luta contra o racismo, a discriminação e todas as
formas de intolerância.
“Muitas vezes ouvi os professores dizerem ‘Você? Não acreditava que você ia tirar essa nota!’, recorda Laura.
Em
pesquisa realizada pelo Instituto Nacional contra a Discriminação, a
Xenofobia e o Racismo (INADI) para a elaboração da segunda edição do
mapa nacional da discriminação de 2014, 32% dos entrevistados disseram
ter presenciado discriminação no âmbito educativo por causa da cor da
pele, e 43% alegaram ter siso vítima de intolerância.
O
estudo apontou ainda que 57% dos entrevistados disseram ter percepção
de que o nível de discriminação sofrido pelos afrodescendentes é alto, e
apenas 29% disseram apresentar uma postura de aceitação em relação aos
afroargentinos.
Guia
voltado para os docentes tem como objetivo promover a luta contra o
racismo, a discriminação e todas as formas de intolerância.
Álvarez explica
que existe uma ideologia racista que se traduz em práticas que as vezes
se reproduzem sem as pessoas sequer as perceberem. A linguagem
discriminatória, por exemplo, é uma violação frequente. O adoção da
expressão “trabalho de negro”, usado para desqualificar uma atividade, e
da palavra “quilombo”, escolhido para se referir a um problema ou a uma
confusão, são mais comuns do que se imagina.
Há
também quem manifeste intolerância e ódio pela internet. O termo “niegro
de mierda” aparece no topo do mecanismo de busca do Google quando é
feita uma pesquisa com o vocábulo “niegro”. São mais de 860 mil
resultados.
Embora
haja na Argentina uma lei antidiscriminatória, ela é ineficaz e pouco
contundente. De acordo com Álvarez, o processo para punir um
comportamento discriminatório é longo e muitas vezes não implica em
punição. “Hoje ninguém vai preso por discriminação, por isso é
importante a existência de uma política antidiscriminatória e social que
pregue princípios de igualdade para que nosso povo possa ter condições
de inclusão no campo de trabalho, educativo e empresarial. Nossas
famílias foram historicamente privadas de seus direitos”, explica
Álvarez.
Segundo ele, o fato de o país proporcionar
educação pública e gratuita, por exemplo, não é garantia de permanência
dos estudantes negros nas escolas. “Muitos deixam o colégio após o
primeiro grau porque o sistema não os acolhe. É necessário haver escolas
e faculdades com políticas públicas, como as cotas raciais adotadas no
Brasil, para que haja espaço de igualdade.”
“Hoje
temos duas pessoas negras – apenas duas pessoas – trabalhando na
Secretaria dos Direitos Humanos, mas que estão ali para mostrar que há
negros no governo. Não há nenhum legislador negro, não há nenhum
deputado negro, não há nenhum apresentador de televisão negro, não há
nenhuma atriz negra, não há nenhuma referência afro em nenhum âmbito
social e político”, ressalta Laura.
Convencido de que
é apenas através da adoção de ações de empoderamento e fortalecimento
dos coletivos afro que mais pessoas se reconhecerão afrodescendentes,
Álvarez enxerga a manutenção e o aprofundamento das conquistas já
obtidas pela população afro como um desafio para o novo governo
argentino que assume o poder no final deste ano. Afinal, afros e não
afros saem ganhando quando as políticas públicas transcendem o sistema
político partidário.
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