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Estrangeiros no próprio país: a história dos afro-argentinos
Publicado há 4 horas - em 23 de julho de 2015 » Atualizado às 10:36
Categoria » África e sua diáspora
Ativistas negros se organizam para combater a discriminação e obter retratação por séculos de ocultamento histórico na Argentina
Por Mayara Moraes Do Terra
Quem
caminha pelas ruas de Buenos Aires se torna testemunha do fenômeno de
invisibilização sofrido pela população negra na Argentina. Qualquer
turista desatento não notaria nos rostos de alguns portenhos os sinais
da miscigenação, nem imaginaria que muitos argentinos que se
autodenominam brancos têm ancestrais africanos. Qualquer pessoa negra
sujeita a cruzar-lhe o caminho o faria se perguntar: “Será que ele é
angolano? Senegalês? Ou melhor, brasileiro?
“É muito
doloroso sentir-se um estrangeiro no seu próprio país”, confidencia
Carlos Álvarez, negro, 39 anos, e presidente do coletivo Agrupación
Xangô.
“A Argentina é um país que luta muito pelos
seus desaparecidos, mas os primeiros desaparecidos somos nós”, desabafa
Laura Omega, negra, 43 anos, cantora de jazz e militante independente da
causa afro.
É comum pensar, erroneamente, que na
Argentina não existem negros e descendentes de escravos. A população
afrodescendente é vítima de um processo de ocultamento que é secular e
cruel, e poucos são os que tiveram a oportunidade de conhecer a ignorada
trajetória de seu povo.
“As guerras e as epidemias
não dão conta de explicar esse fenômeno, por isso falamos de
‘desaparecimento artificial’, que está relacionado com a omissão
deliberada da presença negra nos livros, nos meios de comunicação e na
educação”, argumenta Miriam Victoria Gomes, 53 anos, professora de
Literatura Latinoamericana, especializada em Literatura dos Países
Africanos de Língua Portuguesa, e declarada, em 2012, Personalidade
Destacada da Cidade de Buenos Aires no âmbito dos direitos humanos por
sua longa luta contra o racismo. “Creio que a tentativa de ocultar os
negros da história argentina se explica por uma mentalidade racista,
colonial, capitalista e patriarcal”, reforça.
Laura
conheceu suas raízes e o flagelo de seus ancestrais dentro de casa, com a
avó e ex-escrava Laureana Cairo. Na Argentina, a escravidão foi abolida
oficialmente em 1853, mas, como explica Laura, muito escravos não foram
libertados até 1905. Laureana foi um desses personagens. Nascida em
1897, ela teve que fugir das casas dos patrões para ganhar a liberdade,
aos nove anos, após a morte da mãe. E viveu muitos anos para contar a
história de seu povo. Laureana morreu aos 104 anos.
“Não
cansava de escutar as histórias de minha avó. Tive a sorte de ter uma
família consciente, que sempre me dizia ‘Se você não sabe quem é, não
sabe para onde vai’”.
A verdade é que a história
oficial da Argentina se deve à construção seletiva de seu passado a
partir de um processo de inviabilização dos povos africanos, desde o fim
do século 19. Os negros aparecem no imaginário nacional como escravos
que foram dizimados por guerras pela independência e doenças como a
febre amarela. Essa teoria foi reforçada historicamente com a imagem de
uma Argentina branca e europeia, cuja formação e desenvolvimento
acontecem sem a participação do africano e do afroargentino.
“Na
Argentina, arrancaram a nossa espiritualidade, a nossa cultura e o
nosso idioma. O país desconhece sua população afrodescendente. Está
instalada essa ideia de que se você é negro, não é argentino”, denunciam
Álvarez e Laura.
O censo de 2010 foi o primeiro a
incluir uma pergunta sobre afrodescendente. No total, 149.493 pessoas se
auto reconheceram afrodescendentes, tendo 92% delas nascido na
Argentina.
Álvarez, que também é presidente da
Comissão de Afrodescendentes e Africanos do Conselho Consultivo da
Chancelaria, enxerga a inclusão da variável afro no censo nacional como a
vitória de uma luta histórica do movimento afro. “Não estar nas
estatísticas é como não existir. As autoridades diziam que era muito
difícil montar uma agenda política pública dirigida à comunidade
afrodescendente ou africana, porque não sabíamos quantos éramos e onde
estávamos”.
Carlos
Álvarez milita pela causa afro na Agrupación Xangô, Comissão de
Afrodescendentes e Africanos do Conselho Consultivo da Chancelaria e na
Secretaria de Direitos Humanos
Mas há opiniões divergentes sobre o sucesso e os impactos da inclusão da variável afro no censo nacional.
Sandra
Chagas, negra, 40 anos, e presidente do grupo de disseminação da
cultura africana e afrodescendente Movimiento Afrocultural, acredita que
a campanha não despertou grande sensibilização e que a pesquisa não
reproduz a quantidade real de negros vivendo na Argentina. Segundo ela, a
percepção negativa que os argentinos têm da população negra amedrontou
muita gente que se declararia negra, mas que acabou não o fazendo por
temor.
“Além da falta de conhecimento e da falta de
consciência, houve negação por baixa autoestima e por medo. O negro na
Argentina é sujo, o negro é baixo, o negro é uma merda. Como você vai se
identificar com tudo isso? Conheço meninas que deixaram de sair de casa
porque foram chamadas de negra na rua, pessoas negras que se suicidaram
porque foram abusadas ou hostilizadas”.
Há também quem não foi sequer consultado.
“O
censo foi um fracasso pra mim. Quando vieram a minha casa, eu disse ao
pesquisador: ‘suponho que você tenha uma página onde tenha que anotar a
quantidade de pessoas afrodescendentes e indígenas’. Mas o pesquisador
me revelou que não sabia daquela orientação. Havia três pessoas
afrodescendentes na minha casa e eles não me perguntaram”, revelou
Laura.
“O racismo na Argentina é muito visível e acontece o tempo todo”
Quando perguntados se ainda sentem e sofrem o racismo, Laura, Sandra e Álvarez não titubeiam em responder: o racismo na Argentina é muito visível e acontece o tempo todo, não apenas pelo atrevimento, mas também pela violência e pela impunidade.
Quando perguntados se ainda sentem e sofrem o racismo, Laura, Sandra e Álvarez não titubeiam em responder: o racismo na Argentina é muito visível e acontece o tempo todo, não apenas pelo atrevimento, mas também pela violência e pela impunidade.
“Aqui eles sentem
que podem te dizer qualquer coisa e fazer qualquer coisa com você. Há um
racismo estrutural que tem relação com algumas práticas cotidianas e
com a marginalização provocada pelo processo colonialista”, explica
Álvarez. “Nossas mulheres negras, muitas vezes caminhando, são tidas
como trabalhadoras sexuais”.
“Quando jovem, comecei a
usar saltos e maquiagem. Os homens se aproximavam de mim e perguntavam
quanto eu cobrava. Acabaram com a minha juventude. Nunca mais coloquei
um sapato de salto alto ou me maquiei. É como se toda mulher negra fosse
prostituta”, lembra Laura.
Para a cantora, as
mulheres negras não têm estrutura para bancar que também podem ter os
mesmos direitos que as outras mulheres, e acabam se conformando com a
marginalização.
“Muitas
mulheres da minha comunidade tem cinco, seis, até sete filhos, todos de
pais diferentes que sempre abandonam a família. Se uma mulher negra com
sete filhos vai a uma delegacia e diz que um homem branco a violou,
nada acontece. Eles nada fazem”, argumenta.
Filha de
um imigrante de Cabo Verde, que se mudou para a Argentina depois da
Segunda Guerra Mundial, e de uma argentina filha de caboverdianos, que
desembarcaram na Argentina durante a primeira corrente migratória no
princípio do século 20, Miriam Gomes também desabafa.
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