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segunda-feira, 20 de maio de 2013
“A CPI da ignorância bem calculada”. Excelente!
“A CPI da ignorância bem calculada”. Excelente!
O
texto abaixo, de autoria do antropólogo Oscar Calavia Saez, professor
do Departamento de Antropologia da UFSC, foi enviado por Susan de
Oliveira, com a informação de que ele o escreveu “em defesa do laudo da
sua ex-orientanda, a antropóloga Flávia Cristina de Melo, citado como
fraudulento pelo deputado Luis Carlos Heinze (PP/RS), autor da PFC 61/11
que visa instalar a CPI da FUNAI e anular laudos de demarcações de
terras. O laudo de Flávia Cristina de Melo desapropriou área da Reserva
de Mato Preto (RS), cerca de 4.230 hectares que foram devolvidos aos
Guarani”.
Oscar Calavia Sáez*
Um grupo de deputados federais, membros
ao que parece da bancada ruralista, acaba de solicitar a criação de uma
CPI que investigue o papel que a FUNAI, o INCRA, diversas ONGs e
departamentos universitários desempenham na demarcação de terras
indígenas e quilombolas. Sou professor do Departamento de Antropologia
da Universidade Federal de Santa Catarina, que ganha um destaque
especial nessas denúncias, e fui o orientador da tese de doutorado de
Flávia Cristina de Melo, a antropóloga citada nesse documento. São
motivos suficientes para manifestar-me a respeito.
Os nobres deputados passam revista à
legislação que regula as terras indígenas e quilombolas; às ações de
governo que as implementam, e às dos tribunais que dirimem os conflitos
daí decorrentes, e reclamam de que, no meio desses três poderes, a
Universidade, junto com essas outras entidades, exerça um outro poder
(na opinião deles inadequado e fraudulento) que promove a proliferação
dessas terras indígenas e quilombolas.
A Universidade não é um poder da
República, mas é a encarnação institucional do saber da República.
Quanto ao tema em pauta, esse saber está bem estabelecido. Sabemos que a
formação do Brasil impôs um pesado tributo sobre a sua população
originária: guerra, integração forçosa, esbulho de suas terras. E
recorreu também a um tráfico de seres humanos que, depois de servirem
durante séculos ao agronegócio da cana e do café e a todos os outros
afazeres mais duros da economia, receberam uma liberdade formal, mas não
um lugar desde donde exercê-la; esse é, se alguém não lembra, a origem
da população negra brasileira.
Esse é o passado, e para que a história
possa seguir em termos mais pacíficos e mais justos – e, assim, mais
realmente prósperos – a República tem adotado políticas de
reconhecimento e reparação, mais generosas agora do que foram no
passado. Mesmo assim condicionadas a alguns requisitos que o documento
dos deputados revisa: uma história de resistência, posse permanente das
terras nos últimos decênios, etc. A partir da Constituição de 1988, o
contencioso histórico tem sido resolvido para muitos, não para todos.
Não, precisamente, para os mais afetados pelos esbulhos que continuaram
no último século, enxotando os índios – especialmente os Guarani – e os
pequenos agricultores negros de um canto a outro de um território que ia
sendo loteado e atribuído a outros proprietários, especialmente no sul
do país.
Os nobres deputados se escandalizam de
que um 14% do território brasileiro seja destinado a grupos indígenas
que representam um 0,30% da população, e pensam que isso é um obstáculo
para o progresso do Brasil.
Deveriam talvez se perguntar por quê a
prosperidade do Canadá não está sendo ameaçada por ter destinado aos
povos indígenas – pouco mais vultosos lá – um 40% do seu território.
Quiçá seja porque a prosperidade de um país não está atrelada à
celeridade com que se consomem suas terras e seus recursos naturais com
destino a uma exportação lucrativa, e sim a um desenvolvimento digno de
toda a sua população, e a uma administração criteriosa do seu meio
ambiente. Devem saber que esse 14% é uma parte fundamental da floresta
preservada no Brasil. Mas, é claro, os deputados devem fazer parte dessa
ampla bancada que entende que também se reservou espaço demais para as
matas e as beiras de rio; que a produção pode avançar sempre mais um
pouco sobre elas, enquanto um milagre segura o solo e a umidade. Na
Universidade sabe-se que esses milagres não existem.
Os nobres deputados se inquietam porque
algumas terras reivindicadas para índios e quilombolas tenham um alto
valor produtivo ou venal – do qual parecem bem informados. Haverá algum
propósito oculto nessas reivindicações? Deveriam lembrar que foi
precisamente isso, o valor de suas terras, o motivo para que os mais
fracos fossem uma e outra vez expulsos do lugar onde se encontravam há
setenta, cem ou duzentos anos.
Deveriam explicar também quão miserável
deveria ser o valor de uma terra para que eles estimassem razoável
destina-la aos seus donos originais, ou aos descendentes dos escravos.
Os nobres deputados se preocupam, com
muita razão, pela insegurança jurídica que causam as reivindicações de
terras, especialmente para colonos que ocuparam lotes outrora indígenas.
Mas devem saber que injustiças não resolvidas sempre geram insegurança
jurídica. Por isso mesmo há muito tempo, em lugar de hostilizar e
resistir às iniciativas de instituições indigenistas, universidades e
Ministério Público, deveriam ter tomado iniciativas próprias que não
fossem, como sempre o foram, as de eliminar, de fato ou de direito,
aquelas populações indígenas ou negras que eles só conseguem enxergar
como empecilhos; que foram esteios da construção do país mas podem ser
já tratadas como bananeira que deu cacho.
O documento dos deputados não alude a
essa suspeita, sempre presente em CPIs desse teor, de que as terras
indígenas ameacem a soberania nacional, já que com freqüência se situam
nas fronteiras do país. Mas talvez não tardará em aparecer também esse
bordão, que é uma amostra de malícia ou de ignorância culpável: esses
territórios estão nas fronteiras porque as fronteiras foram garantidas
pela presença indígena. O caso mais conspícuo pode ser o do Amapá, onde a
diplomacia brasileira ganhou uma extensa faixa de terras à Caiena
francesa fazendo reconhecer como brasileiros os índios que lá moravam –
embora então, como ainda agora, esse índios falassem francês…
Os índios tantas vezes acusados de
comprometer a soberania são os mesmos que durante séculos, antes mesmo
da Independência, foram definidos como “muralhas dos sertões”, a
proteger o espaço que viria a ser o do Brasil, e que o continuam a
fazer, integrando em grande número os batalhões de selva do exército
brasileiro.
Bem longe da Amazônia, os deputados
também se preocupam com fronteiras: pretendem que os índios Guarani que
reivindicam terras no sul do país são, na verdade, argentinos ou
paraguaios; o que parece inconteste é que são povos privados de
cidadania sobre cujo território foram traçados, sem a mais mínima
consulta a eles, os limites desses países. Os deputados entendem que,
enquanto as fronteiras se apagam para a expansão do agronegócio
brasileiro em territórios vizinhos, elas devem ser aplicadas com rigor
para os seres humanos aos que, a um lado e outro da fronteira, esse
prodigioso desenvolvimento deixa sem chão.
Eu entendo, como os deputados, que ONGs e
Universidades não deveriam se intrometer em questões de estado que
competem aos três poderes constitucionais. É lamentável que estes, e
muito especialmente o Legislativo, prefiram advogar por fortunas
particulares deixando a outros as tarefas que interessam ao Brasil no
seu conjunto: a defesa do seu meio ambiente e o destino do seu povo.
Enfim, vale a pena refletir sobre um
detalhe, presente no documento, que tem sido motivo para ataques
irônicos contra o laudo da antropóloga Flávia de Melo a respeito da
aldeia de Mato Preto. Ela teria revelado que a decisão de se deslocar
para essa terra foi tomada pelos Guarani durante uma sessão religiosa em
que se consumiu um chá alucinógeno. Superstição, irracionalidade
misturada a decisões sérias? Os nobres deputados devem ter visitado, em
Brasília, o memorial-mausoléu do presidente Juscelino Kubitschek. Lá,
num painel bem visível que trata das origens do seu empreendimento,
ficamos sabendo como a construção de Brasília foi prevista num sonho
profético do santo católico Giovanni Bosco, que quase um século antes da
construção da capital viu a civilização cristã chegando naqueles
sertões então ocupados “apenas” por índios nus. Se a demarcação de uma
terra indígena deve ser posta em dúvida por ter se amparado em visões
próprias de uma religião indígena – tão respeitável como qualquer outra,
enquanto perdure o pluralismo religioso – caberia também se perguntar o
quê fazem esses três poderes ali onde os sonhou um clérigo italiano que
jamais pisou terra brasileira.
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