Flávio Passos Texto foi escrito em resposta a esse editorial do O GLOBO de ontem. http://oglobo.globo.com/opiniao/erro-de-diagnostico-13046402
O racismo e sua cegueira social
Em nossa
história de República, a cor da pele nunca foi critério explícito de
alijamento de maioria da população negra na participação plena nos
processos produtivo e social do país. Porém, na forma com que foram
organizados os vestibulares, os concursos públicos, os programas de
bolsas sanduíche, a constituição da indústria e do comércio e do próprio
sistema político eleitoral, o êxito de uns sempre esteve predito na
desigualdade de quase todos.
Flávio Passos*
Nos
últimos 12 anos, com a emergência das políticas de promoção da igualdade
racial, o racismo tem adquirido formatos mais agressivos, contundentes e
direcionados. Não apenas contra a população negra, como silenciosamente
ele atuou por mais de um século. Mas, principalmente, contra os avanços
na construção da democracia, projeto o qual o país demorou 500 anos
para iniciar. E o faz demarcando o século XXI como sendo o da
diversidade.
Temos dado alguns passos importantes rumo a uma
mudança de cenário na correlação de forças na participação de negros e
não negros em significativos espaços de poder, historicamente
concentrados em uma cota absoluta para o desfrute de uma pequena parcela
social e étnica do país.
O Brasil foi construído em cima de
duas cotas antidemocráticas: as do processo colonizador que concentraram
principalmente a terra nas mãos de poucos e a dos processos
pós-abolição que concentraram as estruturas de poder. As consequências
estão presentes em nossas desigualdades sociais e raciais.
RENDA E IGUALDADE
A população que elegeu Lula e o PT, em 2002, teve como resposta aos
seus anseios um novo modelo de política pública que buscaria conjugar
dois movimentos até então impensáveis pelos donos do poder oriundos da
casa grande. De um lado, as políticas de redistribuição de renda, como o
Programa Bolsa Família – hoje imitado inclusive por países do primeiro
mundo. Ao mesmo tempo em que garantiu a milhões de famílias pobres o
mínimo de dignidade, o Estado brasileiro investiu no fortalecimento da
agricultura familiar, chegando, no início de 2013, a ser chamado à
atenção por entidades do mercado internacional, por “exagerar na dose”.
A segunda resposta, também alvo de críticas por parte de quem sempre
teve o Estado como garantidor de seus privilégios, tem sido as políticas
de ações afirmativas. E ainda estamos longe de consolidá-las enquanto
políticas de Estado, muito por conta da força do racismo agindo no micro
e no macro das nossas relações.
As também chamadas políticas
de igualdade racial, além de chegarem com mais de cem anos de atraso,
justificam-se por ter sido a cor da pele o elemento definidor da
estruturação econômica, social e política do país. E quem questiona a
sua legitimidade são os mesmos que nunca aceitaram, por exemplo, as
reformas agrária ou tributária. O mesmo grupo que força a aprovação da
redução da maioridade penal. Não importamos as ações afirmativas dos
Estados Unidos. Elas é que chegaram aqui depois de terem sido testadas
em mais de quarenta países. O que foi importado, há um século, foi um
triste legado do pensamento científico de cunho racialista que buscava
fundamentar uma absurda inferioridade negra.
CEGUEIRA SOCIAL
As cotas no ensino superior geraram um duplo movimento no país. De um
lado, a reação de uma elite que se viu acuada porque tendo de dividir
espaços antes transformados em redutos de manutenção de seu poder, tendo
como falso legitimador o vestibular, o qual tratava igualmente os
desiguais. O segundo movimento, o da maioria da população, que passa a
se auto afirmar enquanto negra, que busca com mais consciência as suas
raízes, mas também que começa a exigir mais mudanças, mais participação,
mais reformas, mais democracia.
Paradoxalmente, nos últimos
anos, havíamos percebido uma relativa pausa na vociferação anticotas.
Neste mesmo período, quando a burguesia branca viu-se novamente
beneficiada com um programa como o “Ciências sem Fronteiras” – de bolsas
de estudos para o exterior no valor de 60 mil reais por ano –, ela pôde
fazer novamente a experiência do privilégio, e não omitiu qualquer
análise crítica, por mais óbvia que se apresentasse a realidade. Dos
mais de 60 mil bolsistas, menos de 5% são negros. Não vimos ninguém
chamar a isso de “erro de diagnóstico” como foram chamadas as cotas pelo
editorial do jornal “O Globo” de hoje, 30 de junho de 2014. Ou seja, a
cotas em si a cotas em si não curam a elite da prevalência do racismo e
sua cegueira social.
É desse racismo que estamos falando. Em
nossa história de República, a cor da pele nunca foi critério explícito
de alijamento de maioria da população negra na participação plena nos
processos produtivo e social do país. Porém, na forma com que foram
organizados os vestibulares, os concursos públicos, os programas de
bolsas sanduíche, a constituição da indústria e do comércio e do próprio
sistema político eleitoral, o êxito de uns sempre esteve predito na
desigualdade de quase todos.
MARCOS LEGAIS
Avançamos
na definição dos marcos legais de superação do racismo, mas também na
construção de estratégias políticas de superação das nossas
desigualdades raciais. E, das cotas na universidade ao respeito à
liberdade religiosa dos cultos afro-brasileiros, da lei que obriga o
ensino da cultura e história africanas e afro-brasileiras à demarcação
das terras quilombolas, das cotas nos concursos públicos à
democratização da imagem do negro e da negra nos meios de comunicação
social, do combate ao racismo institucional aos órgãos gestores de
políticas de promoção da igualdade racial, do Estatuto da Igualdade
Racial ao Sistema Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SINAPIR), caminhamos a passos firmes para um novo país. Não obstantes a
fúria insana da Casa Grande.
Que o Brasil consiga avançar na
construção da democracia. E só haverá democracia plena, se superarmos
radicalmente o racismo, para além das intenções. O povo dirá nas
eleições de outubro se estamos no caminho certo.
Ps.: Nesta
Copa do Mundo do Brasil, perdemos a oportunidade ímpar de exercitarmos a
nossa diversidade étnica presente na seleção e no cotidiano dos
estádios lotados nos nossos campeonatos. Os negros eram maioria em
grande parte das 32 seleções, inclusive as europeias. Mas, em minoria
quase que imperceptível nas arquibancadas das arenas.
*Flávio
Passos, 42 anos, mestre em Ciências Sociais, assessor técnico de
igualdade racial na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, BA.
(Contato e rede social: br2_ebano@yahoo.com.br)
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