terça-feira, 1 de julho de 2014

O racismo e sua cegueira social

Flávio Passos Texto foi escrito em resposta a esse editorial do O GLOBO de ontem. http://oglobo.globo.com/opiniao/erro-de-diagnostico-13046402

O racismo e sua cegueira social

Em nossa história de República, a cor da pele nunca foi critério explícito de alijamento de maioria da população negra na participação plena nos processos produtivo e social do país. Porém, na forma com que foram organizados os vestibulares, os concursos públicos, os programas de bolsas sanduíche, a constituição da indústria e do comércio e do próprio sistema político eleitoral, o êxito de uns sempre esteve predito na desigualdade de quase todos.

Flávio Passos*

Nos últimos 12 anos, com a emergência das políticas de promoção da igualdade racial, o racismo tem adquirido formatos mais agressivos, contundentes e direcionados. Não apenas contra a população negra, como silenciosamente ele atuou por mais de um século. Mas, principalmente, contra os avanços na construção da democracia, projeto o qual o país demorou 500 anos para iniciar. E o faz demarcando o século XXI como sendo o da diversidade.

Temos dado alguns passos importantes rumo a uma mudança de cenário na correlação de forças na participação de negros e não negros em significativos espaços de poder, historicamente concentrados em uma cota absoluta para o desfrute de uma pequena parcela social e étnica do país.

O Brasil foi construído em cima de duas cotas antidemocráticas: as do processo colonizador que concentraram principalmente a terra nas mãos de poucos e a dos processos pós-abolição que concentraram as estruturas de poder. As consequências estão presentes em nossas desigualdades sociais e raciais.

RENDA E IGUALDADE

A população que elegeu Lula e o PT, em 2002, teve como resposta aos seus anseios um novo modelo de política pública que buscaria conjugar dois movimentos até então impensáveis pelos donos do poder oriundos da casa grande. De um lado, as políticas de redistribuição de renda, como o Programa Bolsa Família – hoje imitado inclusive por países do primeiro mundo. Ao mesmo tempo em que garantiu a milhões de famílias pobres o mínimo de dignidade, o Estado brasileiro investiu no fortalecimento da agricultura familiar, chegando, no início de 2013, a ser chamado à atenção por entidades do mercado internacional, por “exagerar na dose”.

A segunda resposta, também alvo de críticas por parte de quem sempre teve o Estado como garantidor de seus privilégios, tem sido as políticas de ações afirmativas. E ainda estamos longe de consolidá-las enquanto políticas de Estado, muito por conta da força do racismo agindo no micro e no macro das nossas relações.

As também chamadas políticas de igualdade racial, além de chegarem com mais de cem anos de atraso, justificam-se por ter sido a cor da pele o elemento definidor da estruturação econômica, social e política do país. E quem questiona a sua legitimidade são os mesmos que nunca aceitaram, por exemplo, as reformas agrária ou tributária. O mesmo grupo que força a aprovação da redução da maioridade penal. Não importamos as ações afirmativas dos Estados Unidos. Elas é que chegaram aqui depois de terem sido testadas em mais de quarenta países. O que foi importado, há um século, foi um triste legado do pensamento científico de cunho racialista que buscava fundamentar uma absurda inferioridade negra.

CEGUEIRA SOCIAL

As cotas no ensino superior geraram um duplo movimento no país. De um lado, a reação de uma elite que se viu acuada porque tendo de dividir espaços antes transformados em redutos de manutenção de seu poder, tendo como falso legitimador o vestibular, o qual tratava igualmente os desiguais. O segundo movimento, o da maioria da população, que passa a se auto afirmar enquanto negra, que busca com mais consciência as suas raízes, mas também que começa a exigir mais mudanças, mais participação, mais reformas, mais democracia.

Paradoxalmente, nos últimos anos, havíamos percebido uma relativa pausa na vociferação anticotas. Neste mesmo período, quando a burguesia branca viu-se novamente beneficiada com um programa como o “Ciências sem Fronteiras” – de bolsas de estudos para o exterior no valor de 60 mil reais por ano –, ela pôde fazer novamente a experiência do privilégio, e não omitiu qualquer análise crítica, por mais óbvia que se apresentasse a realidade. Dos mais de 60 mil bolsistas, menos de 5% são negros. Não vimos ninguém chamar a isso de “erro de diagnóstico” como foram chamadas as cotas pelo editorial do jornal “O Globo” de hoje, 30 de junho de 2014. Ou seja, a cotas em si a cotas em si não curam a elite da prevalência do racismo e sua cegueira social.

É desse racismo que estamos falando. Em nossa história de República, a cor da pele nunca foi critério explícito de alijamento de maioria da população negra na participação plena nos processos produtivo e social do país. Porém, na forma com que foram organizados os vestibulares, os concursos públicos, os programas de bolsas sanduíche, a constituição da indústria e do comércio e do próprio sistema político eleitoral, o êxito de uns sempre esteve predito na desigualdade de quase todos.

MARCOS LEGAIS

Avançamos na definição dos marcos legais de superação do racismo, mas também na construção de estratégias políticas de superação das nossas desigualdades raciais. E, das cotas na universidade ao respeito à liberdade religiosa dos cultos afro-brasileiros, da lei que obriga o ensino da cultura e história africanas e afro-brasileiras à demarcação das terras quilombolas, das cotas nos concursos públicos à democratização da imagem do negro e da negra nos meios de comunicação social, do combate ao racismo institucional aos órgãos gestores de políticas de promoção da igualdade racial, do Estatuto da Igualdade Racial ao Sistema Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), caminhamos a passos firmes para um novo país. Não obstantes a fúria insana da Casa Grande.

Que o Brasil consiga avançar na construção da democracia. E só haverá democracia plena, se superarmos radicalmente o racismo, para além das intenções. O povo dirá nas eleições de outubro se estamos no caminho certo.

Ps.: Nesta Copa do Mundo do Brasil, perdemos a oportunidade ímpar de exercitarmos a nossa diversidade étnica presente na seleção e no cotidiano dos estádios lotados nos nossos campeonatos. Os negros eram maioria em grande parte das 32 seleções, inclusive as europeias. Mas, em minoria quase que imperceptível nas arquibancadas das arenas.

*Flávio Passos, 42 anos, mestre em Ciências Sociais, assessor técnico de igualdade racial na Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, BA. (Contato e rede social: br2_ebano@yahoo.com.br)

Nenhum comentário:

Postar um comentário