http://www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/cidadania/0047.html
A cor da desigualdade no debate orçamentário
Rosana Heringer
Socióloga, pesquisadora da Universidade Cândido
Mendes (Ucam), da Cepia/Fórum da Sociedade Civil nas Américas e membro
do Instituto de Estudos Raciais e Étnicos (Ierê).
Texto extraído do Boletim Orçamento e Democracia, n.13, Out.-Dez.1999

As iniciativas de democratização do orçamento, principalmente através da implantação do orçamento participativo, apresentam-se como uma das mais bem sucedidas formas de realização destes ideais democráticos na prática.
O debate sobre orçamento público vem se tornando mais complexo ao longo dos últimos anos, à medida que diferentes grupos da sociedade aumentam sua participação no debate sobre a definição da alocação de gastos públicos, principalmente no âmbito municipal. Vários têm sido os avanços por parte de grupos comunitários, associações de bairro, entidades voltadas para o atendimento a crianças e adolescentes, organizações de mulheres, entre outras, em fazer valer suas demandas, através da presença na implementação do orçamento participativo.
Contudo, no campo do debate democrático e da implementação de ações destinadas à realização destas propostas, a dimensão racial e étnica ainda não foi incorporada como um dos fatores importantes para a democratização efetiva da sociedade brasileira. Enquanto vários outros grupos específicos foram capazes de fazer valer suas demandas e propostas no campo político e no debate orçamentário em particular, as organizações de defesa da população negra (preta e parda, segundo classificação oficial) e dos povos indígenas ainda se encontram bastante sub-representadas.
Tal ausência explica-se por motivações de ordem histórica que reforçam a interpretação corrente sobre uma suposta harmonia entre os diferentes grupos étnicos e raciais em nosso país, aliada a uma recusa em se examinar profundamente as causas da extrema desvantagem social a que está sujeita a grande maioria da população negra existente no país.
Qual projeto de nação?
Encarar de frente o debate sobre as desigualdades raciais historicamente acumuladas e socialmente reproduzidas no Brasil apresenta-se como um desafio de grandes proporções, pois significa examinar a fundo o próprio projeto de nação que se está construindo e a definição sobre quem são e serão, no futuro, os beneficiários deste projeto. O fato de que a desigualdade e a pobreza têm cor no Brasil faz com que nossas políticas sociais supostamente universais terminem por ter resultados insuficientes, na medida em que não contribuem para a superação desta ordem de desigualdades.
Estudos recentes (como, por exemplo, Mobilidade social no Brasil: padrões & tendências, de Maria Celi Scalon, Iuperj/Revan) demonstram a cristalização das posições sociais em nossa sociedade, tanto em termos intrageracionais quanto intergeracionais. A desigualdade social permanece quase intocável, na medida em que as políticas econômicas não favorecem uma efetiva distribuição de renda e de riquezas. Dentro deste contexto, o Estado precisa agir, através de mecanismos próprios, no sentido da promoção da igualdade.
A fim de que este ideal se realize, em muitos casos são necessárias mais do que políticas universais para superar o quadro de desigualdade existente. Tais ações podem traduzir-se em programas de estímulo ao aumento da escolaridade de grupos específicos da população; em políticas de saúde que levem em conta a incidência diferenciada de doenças entre os grupos étnicos e raciais; na adoção de programas de capacitação e qualificação profissional que estimulem a população negra, as mulheres e jovens, por exemplo, a ocuparem melhores posições no mercado de trabalho, entre outras medidas possíveis.
A viabilidade de políticas deste tipo está intimamente associada ao grau de aceitação do conjunto da população sobre a relevância das mesmas. Para que se chegue a isto, é necessário que se estabeleça um grande debate no âmbito da sociedade brasileira, no qual se busque aprofundar a relação existente entre democracia e igualdade de oportunidades. Da capacidade das organizações da sociedade civil, e do movimento negro em particular, de estabelecer a articulação entre estes fatores poderá resultar uma participação mais ativa no debate sobre orçamento público, estabelecendo novas prioridades e redefinindo o papel do Estado como agente fundamental na promoção da igualdade.
É certo que este não é um debate simples no âmbito da sociedade brasileira. Ao mesmo tempo, apresenta-se como inadiável se queremos incorporar, não apenas de maneira formal, mas efetivamente, o componente da diversidade à nossa concepção democrática. Tanto o Estado quanto as empresas e organizações da sociedade civil poderão ter um papel relevante nesta tarefa de valorização da diversidade e promoção da igualdade, através de ações diretas e de participação num debate público que contribua para a criação de uma nação mais justa, inclusive em termos raciais e étnicos.
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