terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

MONTEIRO LOBATO - LITERATURA ACIMA DO BEM E DO MAL?




or Lucimar Rosa Dias
 
 
 
04/02/2013 - 14:51
 

Monteiro Lobato. Literatura acima do bem e do mal?
Artigo
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Ao longo dos últimos anos tenho me dedicado a estudar o impacto do racismo e da discriminação racial na constituição da identidade e no desenvolvimento da criança pequena, por isso, não poderia deixar de comentar com vocês um assunto que está em pauta na mídia nacional.
A professora Nilma Lino Gomes/UFMG, atualmente no Conselho Nacional de Educação, foi relatora do PARECER CNE/CEB Nº: 15/2010. Tal parecer trata da pertinência ou não do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, ser distribuído em escolas da rede do Distrito Federal, sem nenhuma orientação aos professores sobre como lidar com trechos da obra em que personagens demonstram atitudes racistas em relação a Tia Anastácia.
A polêmica instalou-se, notícias e artigos vêm sendo publicados nos principais jornais brasileiros, especialmente a Folha de São Paulo, na maioria das vezes com o intuito de questionar a validade de tal iniciativa, como quase sempre acontece com tudo que se propõe a promover a igualdade racial neste país. Até a Academia Brasileira de Letras, em geral muito calada, compenetrada, saiu do casulo e manifestou-se, contrariamente é óbvio.
A simplificação do conteúdo do parecer, qualificando-o como censura ou recomendação para banir o material da escola, acrescida do jornalismo faccioso que ouve somente um segmento sem que haja contraditório, sem que outros interlocutores possam falar, é estratégia bastante utilizada pelo racismo institucional brasileiro. Ignorou-se o conteúdo do parecer e o ponto de vista dos pesquisadores que na academia e na gestão pública vêm se debruçando sobre o papel da educação escolar na reprodução do racismo.
Se é fato que nossas crianças podem e devem ler Monteiro Lobato, também o é que os professores e professoras não podem deixar de problematizar as referências deste autor aos seus personagens negros, especialmente à Tia Nastácia, pois sabemos todos que a literatura contribui na construção de valores – não fosse assim não teríamos tantos projetos incentivando o gosto pela leitura. Em momento algum o parecer fala em banir os livros de Lobato, mas em preparar os educadores(as) para questioná-lo no que for pertinente ou, em último caso, não distribuí-lo. Evidentemente que a aposta está na preparação dos educadores. Assim, como questionamos muitas coisas construídas em nossa sociedade, a literatura é parte disso, seja produzida por Lobato ou por outro.
Para ilustrar o que estamos tratando, trago um trecho de uma de suas obras. O livro “Caçada de Pedrinho”, analisado pelo referido parecer, não é o único a trazer frases preconceituosas: em “Reinações de Narizinho” muitas são as referencias pejorativas aos caracteres negros de Anastácia.
"_ Corra Nastácia! venha ver este fenômeno...
A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.
_ Que é, sinhá? - perguntou.
_ A boneca de Narizinho está falando!...
A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira."
Em outro trecho da mesma obra, numa conversa entre Narizinho e Emília, ocorre o seguinte diálogo:
"_ É, mas você comeu-a com espinho e tudo - e até lambeu os beiços.
_Lábios, aliás. Beiço é de boi. Comi porque quis, sabe? "
Diante destes textos, pergunto: o que estamos ensinando às nossas crianças, quando lemos trechos como estes sem problematizá-los? Além disso, Tia Anastácia, por vezes incontáveis tem seu nome substituído pelo seu pertecimento racial, em várias e várias referências a ela lemos tão somente “a negra”.
Inexiste, no entanto, qualquer referência de Lobato a Dona Benta tratando-a por “branca”. Tal diferenciação de tratamento é repleta de significados. Portanto, creio sim que o tema do parecer é pertinente, pois trata-se de nos perguntarmos que tipo de educação queremos para nossas crianças e qual formação indicamos aos educadores e educadoras que com elas convivem.
Obviamente não há uma relação direta entre ler Lobato e tornar-se racista, preconceituoso, etc, contudo nossa luta é para superar estes aspectos de nossas relações, ou não? Por que questionamos o tipo de publicidade voltada para as crianças, senão porque queremos construir uma sociedade diferente? A naturalização do racismo na sociedade brasileira é a garantia de sua manutenção. É necessário mexer no vespeiro.
Estou plenamente de acordo com quem argumenta que a leitura de Lobato deve ser feita e os professores têm de ter qualificação para discuti-la com seus educandos. É extremamente pertinente apostarmos na formação de professores como um caminho seguro para garantir uma educação de qualidade; no entanto, dificilmente alcançaríamos todos os leitores da obra de Lobato, por isso, a nota explicativa seria uma minúscula contribuição neste oceano que os pesquisadores do tema chamam de racismo institucional.
Não se trata, volto a dizer, de censura, mas de questionar/problematizar a produção, neste caso a literária, para que deste processo emanem princípios e valores que colaborem na construção de novos tempos. A arte nas suas mais variadas linguagens não é desprovida das concepções dos seus produtores sobre o mundo. A arte serve para sedimentar valores ou questioná-los, reforçar uma visão de mundo ou agir para superá-la. A arte é ideológica.
Li Lobato para o meu filho quando ele tinha 6 anos, mas em nenhum momento deixei de problematizar as expressões preconceituosas do autor, como faço com toda literatura que compartilhamos, afinal a arte serve também para produzir reflexão. Creio eu que o parecer reitera este aspecto do processo educativo e reafirma sem medo de questionar um ícone brasileiro, que não se deve ler para crianças sem adverti-las sobre os trechos preconceituosos.
Sabemos todos que este autor tem sido por muitos considerado controverso, ambíguo em muitas questões, a racial é uma delas. Um conto dele chamado Negrinha é para mim a melhor descrição dos impactos do racismo na constituição da identidade de uma criança. Quando a menina negra descobre no contato com meninas brancas que a ela é negada a possibilidade der ser criança, de brincar, simplesmente por ser negra, ela morre.
Outro instigante livro dele é o Presidente Negro. Lobato conhecia e discutia a questão racial, não era um ingênuo produzindo descompromissadamente. Então, não se trata de não ler Lobato, mas como ler Lobato, para quem ler Lobato e talvez qual Lobato ler. O que se segue?
Bem se vê que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu nariz, sabe? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. (...) A boneca botou-lhe a língua. (Idem, p.132).
" Pois cá comigo – disse Emília – só aturo estas histórias como estudos da ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras – coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto ! (Monteiro Lobato, 1957, p. 30)
Difundir estes textos nas escolas desacompanhados de uma orientação crítica fere preceitos legais previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, especialmente os arts. 26A e 79B, razão pela qual vemos com preocupação o ministro da Educação, Fernando Haddad, pressionado pelo conservadorismo da impressa e de certas instituições, anunciar que pedirá ao CNE que reveja o parecer que recomendou restrições à distribuição do livro "Caçadas de Pedrinho" em escolas públicas.
Parece que a produção literária de Lobato estaria acima do bem e do mal, e por isso estaríamos fadados a continuar a ouvindo Emília sendo repetida exaustivamente às crianças: “coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia.” Parafraseando a personagem do autor – Não gosto, não gosto e não gosto!
De saber que muitas e muitas professoras lerão Lobato para muitas e muitas crianças, inclusive negras - que ainda são alvos de chacotas, por seus caracteres físicos, cabelos, nariz, cor da pele - sem que haja uma visão crítica de narrativas como esta; daí porque nós pesquisadores e militantes esperamos que o Ministério da Educação não se furte ao seu papel de educador.


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