or Lucimar Rosa Dias
04/02/2013 - 14:51
Monteiro Lobato. Literatura acima do bem e do mal?
Artigo
Ao longo dos últimos anos
tenho me dedicado a estudar o impacto do racismo e da discriminação
racial na constituição da identidade e no desenvolvimento da criança
pequena, por isso, não poderia deixar de comentar com vocês um assunto
que está em pauta na mídia nacional.
A professora
Nilma Lino Gomes/UFMG, atualmente no Conselho Nacional de Educação, foi
relatora do PARECER CNE/CEB Nº: 15/2010. Tal parecer trata da
pertinência ou não do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato,
ser distribuído em escolas da rede do Distrito Federal, sem nenhuma
orientação aos professores sobre como lidar com trechos da obra em que
personagens demonstram atitudes racistas em relação a Tia Anastácia.
A polêmica
instalou-se, notícias e artigos vêm sendo publicados nos principais
jornais brasileiros, especialmente a Folha de São Paulo, na maioria das
vezes com o intuito de questionar a validade de tal iniciativa, como
quase sempre acontece com tudo que se propõe a promover a igualdade
racial neste país. Até a Academia Brasileira de Letras, em geral muito
calada, compenetrada, saiu do casulo e manifestou-se, contrariamente é
óbvio.
A simplificação
do conteúdo do parecer, qualificando-o como censura ou recomendação para
banir o material da escola, acrescida do jornalismo faccioso que ouve
somente um segmento sem que haja contraditório, sem que outros
interlocutores possam falar, é estratégia bastante utilizada pelo
racismo institucional brasileiro. Ignorou-se o conteúdo do parecer e o
ponto de vista dos pesquisadores que na academia e na gestão pública vêm
se debruçando sobre o papel da educação escolar na reprodução do
racismo.
Se é fato que
nossas crianças podem e devem ler Monteiro Lobato, também o é que os
professores e professoras não podem deixar de problematizar as
referências deste autor aos seus personagens negros, especialmente à
Tia Nastácia, pois sabemos todos que a literatura contribui na
construção de valores – não fosse assim não teríamos tantos projetos
incentivando o gosto pela leitura. Em momento algum o parecer fala em
banir os livros de Lobato, mas em preparar os educadores(as) para
questioná-lo no que for pertinente ou, em último caso, não distribuí-lo.
Evidentemente que a aposta está na preparação dos educadores. Assim,
como questionamos muitas coisas construídas em nossa sociedade, a
literatura é parte disso, seja produzida por Lobato ou por outro.
Para ilustrar o
que estamos tratando, trago um trecho de uma de suas obras. O livro
“Caçada de Pedrinho”, analisado pelo referido parecer, não é o único a
trazer frases preconceituosas: em “Reinações de Narizinho” muitas são as
referencias pejorativas aos caracteres negros de Anastácia.
"_ Corra Nastácia! venha ver este fenômeno...
A negra apareceu na sala, enxugando as mãos no avental.
_ Que é, sinhá? - perguntou.
_ A boneca de Narizinho está falando!...
A boa negra deu uma risada gostosa, com a beiçaria inteira."
Em outro trecho da mesma obra, numa conversa entre Narizinho e Emília, ocorre o seguinte diálogo:
"_ É, mas você comeu-a com espinho e tudo - e até lambeu os beiços.
_Lábios, aliás. Beiço é de boi. Comi porque quis, sabe? "
Diante destes textos, pergunto: o que estamos ensinando às nossas
crianças, quando lemos trechos como estes sem problematizá-los? Além
disso, Tia Anastácia, por vezes incontáveis tem seu nome substituído
pelo seu pertecimento racial, em várias e várias referências a ela lemos
tão somente “a negra”.
Inexiste, no entanto, qualquer referência de Lobato a
Dona Benta tratando-a por “branca”. Tal diferenciação de tratamento é
repleta de significados. Portanto, creio sim que o tema do parecer é
pertinente, pois trata-se de nos perguntarmos que tipo de educação
queremos para nossas crianças e qual formação indicamos aos educadores e
educadoras que com elas convivem.
Obviamente não há uma relação direta entre ler Lobato
e tornar-se racista, preconceituoso, etc, contudo nossa luta é para
superar estes aspectos de nossas relações, ou não? Por que questionamos o
tipo de publicidade voltada para as crianças, senão porque queremos
construir uma sociedade diferente? A naturalização do racismo na
sociedade brasileira é a garantia de sua manutenção. É necessário mexer
no vespeiro.
Estou plenamente de acordo com quem argumenta que a
leitura de Lobato deve ser feita e os professores têm de ter
qualificação para discuti-la com seus educandos. É extremamente
pertinente apostarmos na formação de professores como um caminho seguro
para garantir uma educação de qualidade; no entanto, dificilmente
alcançaríamos todos os leitores da obra de Lobato, por isso, a nota
explicativa seria uma minúscula contribuição neste oceano que os
pesquisadores do tema chamam de racismo institucional.
Não se trata, volto a dizer, de censura, mas de
questionar/problematizar a produção, neste caso a literária, para que
deste processo emanem princípios e valores que colaborem na construção
de novos tempos. A arte nas suas mais variadas linguagens não é
desprovida das concepções dos seus produtores sobre o mundo. A arte
serve para sedimentar valores ou questioná-los, reforçar uma visão de
mundo ou agir para superá-la. A arte é ideológica.
Li Lobato para o meu filho quando ele tinha 6 anos,
mas em nenhum momento deixei de problematizar as expressões
preconceituosas do autor, como faço com toda literatura que
compartilhamos, afinal a arte serve também para produzir reflexão.
Creio eu que o parecer reitera este aspecto do processo educativo e
reafirma sem medo de questionar um ícone brasileiro, que não se deve ler
para crianças sem adverti-las sobre os trechos preconceituosos.
Sabemos todos que este autor tem sido por muitos
considerado controverso, ambíguo em muitas questões, a racial é uma
delas. Um conto dele chamado Negrinha é para mim a melhor descrição dos
impactos do racismo na constituição da identidade de uma criança. Quando
a menina negra descobre no contato com meninas brancas que a ela é
negada a possibilidade der ser criança, de brincar, simplesmente por ser
negra, ela morre.
Outro instigante
livro dele é o Presidente Negro. Lobato conhecia e discutia a questão
racial, não era um ingênuo produzindo descompromissadamente. Então, não
se trata de não ler Lobato, mas como ler Lobato, para quem ler Lobato e
talvez qual Lobato ler. O que se segue?
Bem se vê que é
preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba. Sina é o seu
nariz, sabe? Todos os viventes têm o mesmo direito à vida, e para mim
matar um carneirinho é crime ainda maior do que matar um homem. (...) A
boneca botou-lhe a língua. (Idem, p.132).
" Pois cá comigo
– disse Emília – só aturo estas histórias como estudos da ignorância e
burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são engraçadas, não têm
humorismo. Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras – coisa mesmo de
negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto !
(Monteiro Lobato, 1957, p. 30)
Difundir estes
textos nas escolas desacompanhados de uma orientação crítica fere
preceitos legais previstos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação,
especialmente os arts. 26A e 79B, razão pela qual vemos com preocupação o
ministro da Educação, Fernando Haddad, pressionado pelo
conservadorismo da impressa e de certas instituições, anunciar que
pedirá ao CNE que reveja o parecer que recomendou restrições à
distribuição do livro "Caçadas de Pedrinho" em escolas públicas.
Parece que a
produção literária de Lobato estaria acima do bem e do mal, e por isso
estaríamos fadados a continuar a ouvindo Emília sendo repetida
exaustivamente às crianças: “coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia
Nastácia.” Parafraseando a personagem do autor – Não gosto, não gosto e
não gosto!
De saber que
muitas e muitas professoras lerão Lobato para muitas e muitas crianças,
inclusive negras - que ainda são alvos de chacotas, por seus caracteres
físicos, cabelos, nariz, cor da pele - sem que haja uma visão crítica
de narrativas como esta; daí porque nós pesquisadores e militantes
esperamos que o Ministério da Educação não se furte ao seu papel de
educador.
Nenhum comentário:
Postar um comentário