segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Futebolistas negros: de bons escravos a maus cidadãos.



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Futebolistas negros: de bons escravos a maus cidadãos

Futebolistas negros: de bons escravos a maus cidadãos

O fato de haver uma tolerância à presença negra no futebol não significa a inexistência do racismo. Os jogadores podem ser reconhecidos e valorizados por sua qualidade técnica, mas ainda estão submetidos a uma estrutura organizativa hegemonizada por brancos
Por Dennis de Oliveira*
Os casos recentes de racismo no futebol ganharam visibilidade, a ponto de autoridades se mobilizarem, assim como lideranças do movimento negro, para combater tal prática. A preocupação é com a realização da Copa do Mundo no Brasil,  país com a maior população negra fora da África.
Chama a atenção o fato de o racismo ser praticado em um ambiente em que há grande presença de jogadores negros. Mais: que o futebol profissional aparece como uma das pouquíssimas oportunidades em que jovens negros podem ascender socialmente. Parece, então, algo contraditório, o racismo ser praticado em um lugar onde haveria uma “tolerância” com a celebridade negra. Mas a coisa não é bem assim.
Esta ascensão ao posto de celebridade tem preços a pagar. O primeiro preço é assumir o papel de objeto de consumo da indústria do entretenimento e da mídia. Os jogadores celebridades não são sujeitos, não são pessoas. São objetos de luxo, são peças. Tempos atrás, a lei do passe os escravizava aos clubes. Com o fim da lei do passe, os jogadores são escravizados por uma estrutura empresarial, que negocia os seus contratos, decide que clube vai defender e até o que falar em público. Não é apenas a sua carreira como futebolista, mas como astro, o que implica incorporar uma imagem construída por outros.
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O segundo preço é, dentro de campo, submeter-se à lógica do futebol empresariado por uma verdadeira indústria mafiosa, em que pessoas de moral duvidosa comandam toda a estrutura, definem os calendários de jogos, os formatos de campeonatos etc.
E o terceiro preço a pagar é ser sempre uma pessoa subserviente a toda esta estrutura e, dentro de campo, ao técnico de futebol que se apresenta como o “pai” legitimado pelo “saber técnico” que “civiliza” o “talento” eivado de uma imagem de inocência, infantilidade. Os jogadores “desobedientes” são infantilizados como meninos travessos, moleques ou irresponsáveis, de acordo com a gradação definida pela indústria midiática e do entretenimento.
Detalhe: toda esta estrutura – empresarial, dirigente e técnica – é hegemonizada por brancos. O que significa que jovens negros podem ser bons jogadores de futebol como “bons escravos”, porque são considerados “maus cidadãos” (parafraseando o grande Clóvis Moura, que escreveu tempos atrás o livro O negro – de bom escravo a mau cidadão).
É por isso que o tratamento dado aos casos de racismo por parte da grande mídia é o de que se tratam de comportamentos episódicos, pontuais, de algumas pessoas. Porém, é importante que o movimento negro aproveite o gancho para discutir o racismo estrutural no futebol, que encontra guarida na estrutura organizativa do esporte, para desmontar a ideia de que o fato de haver uma tolerância à presença negra neste campo demonstra a inexistência do racismo. Até porque a luta contra o racismo não é apenas para se conquistar visibilidade como celebridade de alguns, mas a cidadania plena para todos.
*Professor da Universidade de São Paulo no curso de Jornalismo (graduação), Direitos Humanos (pós-graduação) e Mudança Social e Participação Política (pós-graduação). Membro do NEINB (Núcleo de Apoio à Pesquisa e Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro). E-mail: dennisol@usp.br
(Foto de capa: O volante Tinga, do Cruzeiro, foi vítima de racismo em fevereiro, durante uma partida contra o Real Garcilaso (Peru), válida pela Copa Libertadores da América. Todas as vezes em que ele tocava na bola, os torcedores do clube peruano faziam sons imitando macacos. Crédito: Washington Alves/Light Press)

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