http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2015/02/14/rede-globo-o-racismo-ta-no-ar-ou-quer-acoitar-quantos/
“Interrompemos esse programa para apresentar um comercial do século XIX:
Extra, extra, atenção! Não compre escravo hoje!
É que amanhã é dia de mega promoção aqui nas “Escravas Bahia”.
Cabindas, Guinés, Angolas! O Feitor ficou maluco!
Quer açoitar quantos?
É isso mesmo! Compre dois escravos de engenho e leve uma ama de leite inteiramente grátis!
Venha conhecer novas filias: Pelourinho e Pedra do Sal!
Escravas Bahia: Servidão total pra você!”
Esse foi o roteiro interpretado por Marcius Melhem, em um quadro do
programa “Tá no Ar”, que foi ao ar na última quinta-feira (12/02) pela
Rede Globo, em que os atores “brincam com comerciais de TV”.
Já abordamos várias vezes neste Blog o debate sobre os limites do
humor, aliás, assunto recorrente. Só para citar um dos casos, lembro o
infeliz “Baú do Baú do Fantástico”,
de novembro de 2013, quando Bruno Mazzeo dá vida a um repórter que faz a
cobertura da abolição da escravidão no Brasil. Triste!
Preciso aqui repetir o “clichê” – verdadeiro à meu ver -, de que a
rede globo de televisão é sim produtora de conteúdos ideologicamente
comprometidos, sempre a serviço de determinados interesses políticos e
econômicos e que sua arte, na maioria das vezes, tem sempre a
intencionalidade de reforçar estigmas, estereótipos e valores, tudo isso
com dois intuitos fundamentais: vender produtos de seus anunciantes e
formar a opinião coletiva.
O Programa “Tá no Ar”, criação de Marcelo Adnet, Marcius Melhem e
Maurício Farias e que conta com outros atores de peso como Danton Melo e
Mauricio Rizzo, desde sua estréia em 2014, vem sendo comemorado pela
crítica justamente pelo humor ácido e em grande parte, pela crítica à
própria programação da rede globo e das tv’s tradicionais. Sei que
muitos responderão è este texto com argumentos de defesa à liberdade de
expressão, de crítica ao politicamente correto, de acusação ao
“coitadismo negro” ou de erro na percepção, já que a intenção do
programa teria sido exatamente o contrário: criticar e denunciar a forma
como a TV expõe os negros. Um equívoco. E explico:
Empresto o pensamento da professora e ativista negra Adriana de Cássia, quando da polêmica sobre o conteúdo das charges do jornal francês Charlie Hebdo, que resultou no triste assassinato de diversos artistas, sem a intenção de comparações desproporcionais, mas pertinente:
“A ideia de raça que organiza o
entendimento do que é o racismo se estabelece a partir de uma constante
social, não biológica, que relaciona determinados traços fenotípicos a
uma expectativa de desenvolvimento cognitivo e de comportamento social
determinando, dessa maneira, tanto o lugar dos grupos sociais na
estrutura quanto a expectativa que as pessoas tem em relação a esses
grupos.”
Mesmo que a intenção dos humoristas do “Tá no Ar” tenha sido
criticar o racismo na televisão brasileira, há de se perguntar: “Os
grupos que reivindicam direitos para a população negra fazem piada com a
escravidão? O Movimento Negro faria? É possível também argumentar que o
programa usa a estratégia da ironia para expressar uma idéia
antirracista, entretanto, a imagem deveria falar por si mesma, não
poderia dar margem para outros tipos de interpretações. Se, ao observar a
imagem, é possível uma interpretação racista, a tarefa fora, neste
aspecto, mal sucedida. Outra questão: Houve uma pesquisa dirigida à
população negra para aferir como se sentem, tendo sua imagem e sua
história satirizada em rede nacional? Eu, como descendente de pessoas
escravizadas não me senti confortável com a piada. Tampouco achei graça
em ouvir a “mega-promoção” em que a ama de leite sai de graça, depois da
compra de dois escravos homens. Afinal, impossível não associar à minha
mãe, irmã, filhas e à todas as mulheres negras brasileiras, principais
vítimas da violência racista e machista em todos os níveis. Assim, a
peça teatral da maneira como foi construída, reforça a lógica racista da
representação.
E repito o que já escrevi aqui quando da análise do humorístico do Fantástico:
Um regime de escravidão que durou 388 anos; Que custou o sequestro e o
assassinato de aproximadamente 7 milhões de seres humanos africanos e
outros tantos milhões de seus descendentes; e que fora amplamente
denunciado como um dos maiores crimes de lesa-humanidade já vistos, deve
ou pode ser motivo de piadas?
Quantas cenas de “humor inteligente” relacionado ao Holocausto; Ou
às vítimas de Hiroshima e Nagasaki; Ou às vítimas do Word Trade Center
ou – para ficar no Brasil – às vítimas do incêndio na Boate Kiss,
assistiremos como fruto da boa intenção de roteiristas que não sabem do
que falam ou do cinismo dos grandes meios de comunicação? Ah, mas homens
e mulheres postos à venda e nos lembrando que sempre fomos – negros e
negras – tratados como mercadoria, desumanizados e coisificados, em rede
nacional e à mercê da gargalhada coletiva, isso pode! E com direito a
status de humor crítico e inteligente.
Se é verdade que a crítica e a autocrítica são elementos da
concepção de “Tá no Ar” e da iniciativa da emissora, eles falham no
momento em que não rompem com a lógica de manipulação das representações
e reforçam estereótipos raciais, colocando-se assim como um veículo de
comunicação que, através de tal conteúdo, fortalecem e fomentam o
racismo.
É preciso estar alerta. Fugir à regra da cognição racista é tarefa
das mais difíceis. Se a missão é combater o racismo, não se pode
utilizar da mesma lógica estrutural que organiza o pensamento racista.
Portanto, nada de piadas sobre a escravidão, por favor!
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