http://cenbrasil.blogspot.com.br/2013/11/racismo-na-infancia-as-marcas-da_9360.html
Como
uma pessoa se torna racista e que tipo de efeitos a criança vítima de
discriminação carrega para a vida adulta? A reportagem que você lerá a
seguir propõe uma reflexão sobre essas e outras perguntas
A pequena
estudante*, de quatro anos, acordou alegre naquele dia. Estava orgulhosa
por ter sido escolhida pela professora para ser a noivinha da festa
junina da escola. Os cabelos crespos foram cuidadosamente arrumados pela
mãe e enfeitados com um véu branco, que emoldurava um rosto expressivo e
sorridente. Era para ser uma data especial na vida daquela criança.
Porém, o encantamento durou pouco.
A professora
Denise Aragão lembra que tentou, em vão, conter a agressora, que
continuava a gritar insultos racistas. As pessoas da sala ao lado vieram
acompanhar o que estava acontecendo e a menina ficou em um canto,
ouvindo tudo. Ela era a única negra em meio a uma turma de 14 crianças
brancas. “Isso mexeu tanto comigo, foi uma chibatada. Tinha muita
maldade naquelas palavras”, conta a educadora.Durante
a quadrilha, a avó do colega que fez par com a menina mostrou
indignação ao ver que o neto dançaria com uma aluna negra. Dias depois,
voltou à escola para tirar satisfações. Segundo consta no boletim de
ocorrência registrado pela família da vítima, a senhora de 54 anos
entrou aos berros, perguntando por que fizeram o neto, que é branco,
dançar com aquela “preta feia, horrorosa”.
Denise
denunciou as ofensas à responsável pelo colégio, que tratou a situação
com desdém. “A diretora disse que isso acontece sempre e, se fosse
brigar com cada família preconceituosa, a escola já estaria fechada”,
afirma. Inconformada com a conivência de quem deveria ajudar a proteger
os alunos, ela pediu demissão. Esperou dois dias para ver se os pais
seriam comunicados e, quando viu que nada foi feito, resolveu ligar para
a mãe da menina para contar tudo.
A
massoterapeuta Fátima Souza disse que tinha mesmo estranhado o
comportamento da filha. No dia em que foi humilhada na escola, a criança
não conseguiu comer nem dormir direito e estava muito assustada. Depois
disso, passou a vomitar com frequência, tinha crises de choro e pânico
de ficar longe dos pais.
Mais de um ano
após o episódio, as sequelas permanecem. Fátima conta que a filha faz
acompanhamento psicológico uma vez por semana desde o fato, mas a
recuperação do trauma é um processo lento. “Ela era muito independente,
esperta, resolvia tudo sozinha. Hoje, chora por qualquer coisa, diz que é
negra, feia e que eu não gosto dela. Isso causou um estrago na vida da
minha filha. É muito doído”, emociona-se.
O caso
aconteceu em uma escola particular de Contagem, na região metropolitana
de Belo Horizonte, mas poderia ter sido em qualquer outro lugar do
Brasil. A realidade da discriminação racial no país faz com que muitas
pessoas sejam submetidas, todos os dias, ao ódio e à intolerância. E o
que pouca gente percebe é que tipo de consequências isso pode trazer
quando a vítima é uma criança, em processo de formação da própria
identidade.
De acordo com a
diretora-presidente do Instituto AMMA Psique e Negritude, Maria Lúcia
da Silva, entre 8 meses e 3 anos de idade, o ser humano começa a notar
as diferenças físicas entre ele e os outros. A especialista destaca que,
nesse período, é fundamental que ele se sinta aceito, acolhido e
valorizado nessas diferenças. “Esse poderá ser o início do conflito que o
bebê ou a criança irá travar com seu corpo com base nas representações
negativas que a sociedade tem e que se manifestam através de toques,
olhares, chacotas, apelidos e imagens depreciativas”, explica.
Ela ressalta
que o desenvolvimento da autoestima se dá nos primeiros anos de vida,
por meio do modo com que a criança é tratada pela família e também nas
relações sociais. A inferiorização de determinados grupos raciais não
deve ser negligenciada, sobretudo na infância. Na opinião de Maria
Lúcia, as brincadeiras pejorativas entre colegas, muitas vezes tidas
como “inocentes”, podem esconder padrões de comportamentos que ajudam a
perpetuar o racismo na sociedade. “Ao ser xingada, a criança sente-se
humilhada, envergonhada. Ela é destituída de seu nome próprio e de sua
humanidade quando, por exemplo, lhe atribuem alguma característica
animal”, alerta. Entre os efeitos da constante exposição a situações
vexatórias, estariam o sentimento de desvalorização, a rejeição da
própria imagem, a inibição e a dificuldade de confiar em si mesma.
O mito da democracia racial
E como as
relações de dominação étnico-racial são aprendidas nessa fase? Para a
professora e doutora em Psicologia Social pela Universidade de Brasília
(UnB) Jaqueline de Jesus, não é preciso que se diga explicitamente a uma
criança que uma parcela da sociedade é considerada menos importante do
que a outra. Os exemplos não são poucos e estão na televisão, nos livros
didáticos e nos espaços subalternos, geralmente vinculados à servidão a
pessoas brancas.
Ela acredita
que a ideia de lugares adequados e inadequados para negros, por exemplo,
pode ser o primeiro impacto para crianças que testemunham a segregação
ainda existente hoje. “O racismo fica explícito quando se observa que a
população pobre é majoritariamente negra, que as seleções de emprego
preferem as pessoas brancas, quando a maioria da população carcerária é
negra, quando leis contra o racismo simplesmente não são aplicadas”,
destaca.
A opinião da
psicóloga é confirmada pelas estatísticas. Um estudo, lançado em 2010
pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), mostrou que, no
Brasil, vivem 31 milhões de meninas e meninos negros e 140 mil
indígenas. Ao todo, representam 54,5% de todas as crianças e
adolescentes do país. Mesmo sendo a maioria da população nessa faixa
etária, o acesso a serviços básicos de Saúde, Educação e à moradia para
eles é bem diferente. Segundo o levantamento, uma criança negra tem 70%
mais risco de ser pobre do que uma criança branca.
O respeitado
sociólogo Florestan Fernandes (1920-1995) costumava dizer que os
brasileiros têm “preconceito de ter preconceito”, no sentido de que
existe um esforço maior em negar o preconceito no País do que,
efetivamente, em buscar soluções para combatê-lo. Jaqueline concorda com
a ideia e defende que o primeiro passo para mudar esse quadro é acabar
com a falsa concepção de que aqui existe uma “democracia racial”, o que
seria responsável por mascarar uma série de desigualdades. “O cínico
racismo brasileiro é um legado histórico e social no qual estamos
incluídos, e que, mantido estruturalmente pela lógica do sistema
econômico vigente, ressignificou o antigo escravo negro, agora livre,
como um subcidadão, uma pessoa com menos capacidades intelectuais e
técnicas do que um branco”, afirma.
O papel da escola
O investimento
em Educação seria um dos meios mais eficazes para garantir uma mudança
real na sociedade. Disso, ninguém duvida. Porém, pesquisas revelam que,
nessa área, está longe de haver uma igualdade de oportunidades entre
todos os cidadãos. Ainda segundo os dados publicados pelo Unicef, uma
criança negra entre 7 e 14 anos tem 30% mais chance de estar fora da
escola. E uma criança indígena tem quase três vezes mais chance de não
frequentar as salas de aula em relação a uma criança branca na mesma
faixa etária. Se o acesso ao ensino é difícil, permanecer nos bancos
escolares também pode não ser uma tarefa simples.
Para a
assistente social e mestre em Educação pela Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (Uerj) Yvone Costa, a escola precisa se firmar como um
espaço que valoriza a diversidade cultural, a troca de experiências, o
respeito mútuo e, dessa forma, ajudar a promover a desconstrução de
estereótipos racistas. “No cotidiano das instituições de educação
infantil, percebemos crianças negras querendo os seus cabelos ruivos,
louros e escorridos. Isto é, buscando a ideia do belo que lhes é
transmitida através de um processo excludente e preconceituoso”,
observa.
Yvone ressalta
que faltam projetos pedagógicos dispostos a ir além da visão
eurocêntrica dos currículos escolares e, assim, as crianças acabam
reproduzindo aquilo que é ditado pelo senso comum. Ela atribui a
situação, entre outros fatores, à má qualidade da formação dos
professores e à ausência de condições adequadas para o exercício da
profissão.
Como forma de
tentar incentivar uma educação mais inclusiva, em 2003 foi aprovada a
Lei 10.639, que tornou obrigatório o ensino da História e da Cultura
Afrobrasileira nas escolas públicas e privadas. Embora reconheça a
iniciativa como uma conquista dos movimentos sociais, Yvone reforça que é
preciso colocá-la em prática no dia a dia dos alunos, e não apenas como
um assunto a ser discutido em datas pontuais, como o Dia do Índio ou da
Abolição da Escravatura.
Para ler com as crianças:
O Menino Marrom
Ziraldo
O livro revela a
amizade entre dois meninos, um negro e um branco. O autor utiliza a
convivência e as aventuras deles para pontuar as diferenças humanas e
falar sobre preconceito.
Cabelo Ruim? – A história de três meninas aprendendo a se aceitar
Neusa Baptista Pinto
A descoberta da
beleza e da autoaceitação são o assunto central desse livro, que traz
como personagens três meninas negras e pobres que enfrentam
manifestações preconceituosas em relação ao seu cabelo crespo. Aos
poucos, elas vão aprendendo a amá-lo do jeito que ele é.
Meu Vô Apolinário: Um mergulho no rio da minha memória
Daniel Munduruku
O autor resgata
as memórias de como os ensinamentos de seu avô o motivaram a conhecer e
se orgulhar da sua ancestralidade, relatando fatos da própria
trajetória como criança indígena. Além disso, narra diversas histórias
de seu povo, passadas de geração em geração.
Raízes históricas
E é justamente
no período de quase 400 anos dominados pela escravidão no Brasil que o
historiador Sidney Lobato se concentra para explicar as expressões do
racismo na atual sociedade. “Os filhos de escravos tinham um lugar
marginalizado. Nessa época, eram comuns as situações de violência física
e de brincadeiras sádicas da criança branca em relação à negra. Hoje,
existe uma violência simbólica dada de forma mais sutil, mas ainda
seguindo os mesmos padrões”, enfatiza.
Ele lembra que,
após a libertação dos escravos, houve uma ação intensa por parte das
autoridades para atrair imigrantes europeus como forma de alavancar a
modernização do País a partir do “branqueamento” da população. Afinal,
eram atribuídos às pessoas brancas os padrões estéticos, morais e
intelectuais considerados desejáveis para uma nação desenvolvida. Dessa
maneira, formou-se uma massa cada vez mais numerosa de negros excluídos.
Sidney ressalta
que os indígenas também foram preteridos ao longo da História. Ele
afirma que, com o crescente desmatamento e a disputa por terras, foi
sendo tirado o direito desses povos à própria sobrevivência. “Eles não
têm como se sustentar. E as crianças, assim como os mais velhos, são os
que mais sofrem com isso”, alerta.
No Brasil,
apesar de todos os esforços que asseguraram uma taxa de mortalidade
infantil em torno de 19 mortes para cada mil crianças nascidas vivas, a
taxa de mortalidade infantil indígena ainda representa um desafio para a
saúde pública. Em 2010, relatório oficial da Fundação Nacional de Saúde
(Funasa) revelou o índice de 41,9 mortes infantis para cada mil
crianças indígenas nascidas vivas, valor muito acima da média nacional.
Os suicídios
também são uma importante causa de mortalidade nessa população. De todos
os óbitos registrados entre crianças, adolescentes e jovens indígenas,
5,8% deles foram por suicídio – o que equivale ao triplo da proporção
quando comparada à dos brancos, que apresentam um índice de 1,9%. Os
dados são do Sistema de Informações sobre Mortalidade, compilados
durante cinco anos e divulgados em 2008 pelo Ministério da Saúde.
Em busca de um caminho possível
A
diretora-presidente do Instituto AMMA Psique e Negritude, Maria Lúcia da
Silva, frisa a importância de pais e educadores para fortalecerem na
criança a necessidade de respeitar as diferenças. Ela sugere que o
assunto seja debatido de forma lúdica, por meio de jogos, conversas e
filmes. “Os educadores, assim como os pais, são figuras fundamentais na
vida da criança. Eles representam autoridade, ocupam lugar de admiração e
modelos de identificação”, observa.
E, ao notarem
isolamento e tristeza causados por um ato de discriminação, a
especialista afirma que é preciso uma atenção especial. “As crianças têm
de ser elogiadas, reforçando a beleza da sua cor, do seu cabelo, da sua
história e de seu povo”, ensina. Outra dica é reunir meninos e meninas
de várias culturas para falar sobre a diversidade de alimentos, músicas e
brincadeiras que eles podem aprender uns com os outros.
Procurada para
falar sobre o assunto, a assessoria da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (SDH/PR) – pasta responsável pelas ações
voltadas às crianças e aos adolescentes no âmbito federal – afirmou que
estão sendo desenvolvidas atividades com foco na inclusão social. Entre
elas, mutirões de registro de nascimento, campanhas para incentivar a
adoção de crianças de variadas etnias e apoio ao projeto Olhares
Cruzados, que contribui para a redução da mortalidade infantil indígena.
MC JAPÃO
Rapper
“As
pessoas que ajudaram a construir Brasília não tiveram o direito de
morar no centro. Elas foram levadas para vários locais distantes,
criando as cidades-satélites. Sou de uma delas. Eu nasci na Ceilândia em
1971, mesmo ano em que foi fundada. Vim de uma família de nordestinos.
Éramos um dos poucos casos de famílias negras que tinham pai e mãe. A
maioria ou tem pai ou tem mãe, nunca os dois.
A questão da
discriminação já vem de muito tempo e, hoje, continua a mesma coisa.
Comecei a estudar durante o regime militar. Havia muita repressão e,
dentro da repressão, havia o preconceito. Eu vivi no meio disso tudo. Se
você é negro, já é inferior. Não são as pessoas da comunidade que
pregam, é o próprio sistema. Lembro como se fosse hoje. Na escola, a
menina branca era a princesa. O menino branco era o inteligente e o
menino negro vai ser sempre “o neguinho”.
Isso vem desde a
formação do País, desde 1500. Os portugueses já chegaram aqui como
patrões. A questão do racismo é muito difícil e não vai parar tão cedo.
Até entre os negros existe uma competição. Eu tenho um sobrinho negro e
ele diz que não é negro, diz que é marrom. Para ele, marrom é superior
ao preto. Ele é baseado no que vê, no que aprende. A escola ensina que a
cor negra é feia. A cor branca é que é a cor da paz, da pureza. Quais
são nossos heróis? Dom Pedro I, Princesa Isabel. Escola alguma fala de
Zumbi, de Dandara. Para o sistema, eles são vilões.
A nossa
assistência tem que ser imediata. Nós não temos assistência a longo
prazo. Eu estou com fome, tenho que comer agora. Não posso esperar para
daqui a uma semana. E, quando você liga a televisão, tem uma família
branca sentada, com uma mesa cheia de comida. Todo mundo bonito, todo
mundo pregando o amor, sabendo que o amor, muitas vezes, é baseado no
dinheiro. A TV brasileira tem uma cota para negros. São uns 10%, só para
dizer que é contra a discriminação. Isso é fachada. Nós somos a maioria
da população do País, mas uma maioria impedida de vencer.
Quando eu era
garoto, a escola em que eu estudava tinha umas festas black. A turma que
eu andava era o Amendoim, o Verminoso, o Ricardo Beição… Nós só éramos
conhecidos por apelidos. Tínhamos destaque na dança, mas quem ganhava
todo o mérito eram os meninos branquinhos da escola. Eu passava por esse
sofrimento. Passei por isso, mas não me deixei abater. O rap sempre
pregou o não à discriminação, o não ao preconceito. Dizem que o rap é
violento, mas ele é o relato fiel da comunidade.”
DANIEL MUNDURUKU
Escritor
“Nasci no
estado do Pará, no coração da Floresta Amazônica. Minha vida na aldeia
era sempre muito alegre, divertida e cheia de aventura. Quando fui para a
cidade para estudar, sofri um grande impacto, porque foi uma mudança
muito drástica e traumática. Fui vendo que a diferença que eu carregava
comigo incomodava a mim mesmo e, por um bom período, desejei não
pertencer a um povo indígena e até neguei minha origem. Isso porque a
escola dizia que eu era muito diferente e que precisava ser mais
parecido com os outros para ser normal.
Como eu havia
sido educado em uma cultura que aos outros parecia estranha, era
considerado um estranho. O que as pessoas da cidade não sabiam é que,
para mim, os estranhos eram elas. Para o “um”, o outro é sempre
diferente e, para o outro, o “um” é que é. Quem vence essa guerra de
nervos? Aqueles que são alimentados pela ideologia do poder. A tentativa
do “um” dominar se dá pela desqualificação, diminuindo as outras
pessoas através da criação de estereótipos. E não foram poucos os
estereótipos de que os povos indígenas foram vítimas: atrasados,
preguiçosos, sujos, canibais.
Para quem sofre
o preconceito, há sempre marcas que perduram para a vida toda.
Normalmente, a gente acaba aceitando o que falam da gente ou acaba
odiando ser quem a gente é. São sentimentos que marcam nosso corpo e
nossa mente e, infelizmente, eu também fiquei marcado por esse tipo de
preconceito, o que me levou a negar a minha própria cultura. Graças a um
avô que tive é que consegui não me perder de mim mesmo.
As taxas de
mortalidade entre as crianças indígenas revelam que o contato das
sociedades indígenas com a não indígena é nocivo para a parte mais
frágil dessa corrente. Muitas doenças têm ocasionado a morte de crianças
indígenas, e parte dessas doenças é causada por agentes externos, como
alimentação e a água poluída, que causa disenteria e a consequente
desidratação; resfriados ou vírus alienígenas ao universo das crianças;
além do péssimo atendimento médico prestado às comunidades indígenas.
A causa disso
tudo é a desvalorização dos saberes tradicionais, trazida especialmente
pela televisão. Tenho a impressão de que isso tudo tende a piorar nos
próximos anos. Os povos indígenas trazem consigo um destino muito cruel:
suas culturas irão ser cada vez mais desvalorizadas, sua educação
tradicional esquecida e as crianças sem chance de manterem vivo tudo o
que seus antepassados viveram.” F
JOSEFINA SERRA
Advogada
“Sou de Cajapió, no interior do Maranhão. Minha mãe era quebradeira de
coco-babaçu e meu pai trabalhava na roça. Fui afastada da família aos 5
anos, quando me levaram para uma fazenda para ajudar a lavar roupa,
cuidar do gado e servir os vaqueiros. Era tratada como escrava. Com 6
anos, comecei a trabalhar em casa de família na capital, São Luís. E, a
partir daí, fui sendo levada de um lugar para o outro, e morei também no
Rio de Janeiro e em Brasília. Não tinha qualquer pagamento.
A maioria das
meninas negras é muito humilhada, muito abusada. Recebia roupas velhas. O
sapato que ganhei uma vez era muito maior do que meu pé e me enchia de
feridas. Não podia ver televisão, só que sempre dava um jeitinho de
assistir escondida atrás da porta. O tempo foi indo e nada mudou. Eu
lavava, passava, cozinhava, fazia faxina e cuidava de outras crianças,
mas não podia subir com elas no mesmo elevador. Tinha que pegar o de
serviço, sem entender direito o porquê.
Insisti muito
para poder estudar. E, na escola, não era fácil. Fui chamada de cabelo
de Bombril, urubu, macaca, miserável. Era motivo de piada, e isso vai te
marcando. Eu não falava nada, só ia guardando. As minhas colegas não me
convidavam para brincar porque eu era empregada doméstica. Por ser
negra e estudiosa, diziam que eu era metida. Na infância, não tive
amigos. Aliás, não posso nem dizer que tive infância. À noite, ficava
lendo sozinha no quarto escuro, à luz de vela, porque não podia nem
gastar a luz.
Fui assediada
sexualmente por vários patrões, sofri ameaças, xingamentos. Segui nessa
vida até a faculdade. Acordava muito cedo, vivia cansada. Dormia na sala
de aula. Quando passei no vestibular, algumas pessoas fizeram vaquinha
para pagar a matrícula. Eu me formei em Direito, sou advogada e atuo no
movimento negro. Ainda me sinto muito fragilizada, insegura. Hoje, me
pergunto como é que eu aguentei tudo isso. Na verdade, acho que a gente
nunca consegue superar totalmente.”
Relembre alguns casos:
Julho/2013 – Dourados-MS
Um menino de 3
anos foi abandonado em um terreno baldio. Foi encontrado sujo, com fome e
chorando muito. Depois de contar muitas versões contraditórias, a mãe
admitiu à polícia ter sido um ato desesperado, pois estava de mudança
para a capital para viver com um novo companheiro, e ele não aceitava
ter em casa uma criança negra. O menino foi encaminhado para um abrigo,
enquanto espera a decisão da Justiça sobre quem terá a nova guarda.
Março/2013 – Recanto das Emas-DF
Uma menina de
12 anos foi agredida com socos, chutes e arranhões por quatro jovens.
Ela teve a camiseta rasgada e ficou com hematomas e partes do corpo
inchadas. A vítima contou que pegou o ônibus errado para ir à escola e
entrou em um beco. Duas garotas a seguraram e outras duas bateram nela.
Motivo: disseram que negros não podiam passar pelo lugar e que teriam de
“pagar por isso”.
Janeiro/2013 – Rio de Janeiro-RJ
O filho adotivo
do casal Ronald Munk e Priscilla Celeste foi expulso de uma
concessionária da BMW na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro.
“Você não pode ficar aqui dentro. Não é lugar para você. Saia da loja!
Eles pedem dinheiro e incomodam os clientes”, disse o vendedor,
referindo-se ao menino negro, de 7 anos. Em nota, a empresa afirmou não
saber que a criança estava acompanhada dos pais e que tudo não passou de
um “mal-entendido”.
Janeiro/2012 – Goiânia-GO
Uma pastora
evangélica foi denunciada pelo Ministério Público Federal de Goiás por
escravizar uma criança indígena em Goiânia. Ficou constatado que a
menina, de 11 anos, foi submetida à condição análoga à de escravo no
período de maio de 2009 a novembro de 2010, quando era obrigada a
realizar trabalhos domésticos. As investigações apontaram que a criança
foi ameaçada com castigos corporais e submetida a longas horas de
serviços diários.
Janeiro/2011 – São Paulo-SP
Acusado de
furto em um hipermercado de São Paulo, um menino de 10 anos foi levado
por três seguranças a uma sala reservada, onde, segundo contou, foi
chamado de “negrinho sujo e fedido”. Ele diz ter sido ameaçado com um
canivete e obrigado a tirar a roupa. Segundo o boletim de ocorrência
registrado pela família, só após revistarem e insultarem a criança é que
foi encontrada a nota fiscal dos produtos que ele levava: biscoitos,
salgadinhos e um refrigerante.
Como denunciar
Em casos de
discriminação racial contra crianças, é possível buscar ajuda nos
conselhos tutelares, nas ouvidorias dos serviços públicos e nas
delegacias de proteção à infância e à adolescência, por exemplo. A
prática do racismo é uma violação de direitos condenável em vários
países e, no Brasil, é crime inafiançável, previsto em lei.
* A identidade foi preservada em respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente.