http://blogueirasnegras.org/2014/04/30/o-significado-politico-de-uma-boneca-negra/
O significado político de uma boneca negra
Era uma vez uma menina. Era
uma vez uma menina negra. Era uma vez uma menina negra que queria ter
cabelo amarelo “cor de biscoito Fandangos”. Até que um dia esta
garotinha ganhou de presente uma boneca negra. E, então, naquele
momento, aconteceu uma verdadeira epifania!
A criança da nossa história se viu projetada em sua boneca.
Ao contemplar o gracioso bebê negrx de vestido lilás claro, aquela
criança se entendeu negra pela primeira vez. Conseguiu enxergar-se bela
através da imagem refletida pela bonequinha! Mais ainda,
inconscientemente, aquela garotinha notou que suas características
físicas eram bonitas e merecedoras de serem copiadas.
Não preciso dizer que a ideia do cabelo “amarelo” foi sumariamente descartada!
De lá pra cá, nunca mais senti necessidade de ter cabelos
loiros. Não porque – em si – pintá-lo seja algo bom ou mau. Nada disso. O
fato é que a vontade de ter o cabelo na cor “de biscoito Fandangos” –
era assim que eu falava quando era criança – se dissipou na medida em
que descobri, com a ajuda daquela boneca, a beleza existente na cor do
meu próprio cabelo.
Foi aí que comecei a descobrir as nuances castanhas da
minha cabeleira. Meus olhos se abriram para a textura gostosa e macia
dos meus fios. Aprendi a admirar a “cor-de-bombom” da minha pele! Por
meio dos olhos da bonequinha, pude visualizar como o formato dos meus
olhos café é ricamente amendoado… Não senti mais, desde então, o desejo
de usar lente de contato verde.
Meus lábios eram como o da boneca. Ina tinha os lábios
grossos assim como os meus. E eram bonitos! Ah, se eram! Como aqueles
lábios salientes abrilhantavam minha graciosa filhinha! Notei que não
precisava ter lábios que não eram meus. Os lábios “finos” das atrizes
globais deixaram de ser meu objeto de desejo.
E o nariz… O que falar dele! Confesso que o meu nunca foi
um problema para mim, pois sempre ouvia “elogios” do tipo: “Olha só como
ela tem os traços finos!”, “Que nariz mais formoso e delicado”, “Seu
nariz é tão bonito que nem parece com o de preto”… E, de fato, durante
um tempo, eu me defini como a “mulata de nariz fino e de traços
delicados”. Afinal de contas, era esse o modo o qual as pessoas se
referendavam a mim.
E, outra vez, ei-la! Eis que surge, de novo, a bendita boneca!
Quando a menina de tranças observou atentamente a
criancinha em miniatura que estava em seu colo, de imediato, tratou de
analisar aquele nariz com olhar de descrédito e desconfiança… Ele – o
nariz – era tão diferente do “fino e delicado”. Tenho que admitir, cara
leitorx, que a primeira impressão foi bastante negativa.
Entretanto, à medida que eu brincava com a Ina – e desde
que fui presenteada, só queria brincar com ela! – o nariz, aos poucos,
foi me parecendo mais agradável, simpático… bonito! Eu pensava com meus
botões: “O nariz da Ina fica tão bem nela”. “A Ina é tão linda”. “Que
curioso: é bonita e não tem o meu nariz”. “E eu aqui, achando que só as
meninas de nariz ‘fino’ e ‘delicado’ eram belas”. Em meu íntimo se
operava uma mudança de ponto de vista, cada vez que admirava minha
bonequinha preta, pois, lá dentro, eu começava a entender o quanto sua
própria beleza fazia com que tudo naquele corpo se harmonizasse
certinho!
A boneca era “negramente” linda! Ela era como eu: negra de
olhos café-amendoado, pele “bombom”, lábio grosso, cabelo crespo e,
ainda por cima, era coroada com aquele nariz! Ela tinha o nariz que me
ensinaram, desde cedo, a considerá-lo feio… Para minha surpresa, eu a
descobri inusitadamente bonita! Graças à Ina, minha boneca, um novo
olhar acerca de mim, enquanto menina negra, se descortinou diante dos
meus olhos.
Finalmente estava apta a reconhecer o valor único de
beleza, contido em si mesmo e inerente a meus atributos físicos. Na
medida em que brincava diariamente com aquela réplica de criança negra
moldada em vinil, minhas características étnicas ganhavam forças. Aos
poucos, a negritude foi deixando de ser “objeto sujeito à mensuração de
padrões externos” e migrou para a condição de beleza referencial. Foi
assim que se iniciou, em minha pessoa, o complexo e não linear processo
de construção da autoimagem negra. Minha bagagem existencial começava a
assumir contornos de padrão estético com vida própria!
O marco fundador da reflexão política? Não tenho dúvidas de
que foi o contato contínuo e reiterado com esta boneca em minhas
brincadeiras.
Entender o significado político de uma boneca negra é
perceber que o ato de presenteá-la a uma criança negra vai além de se
ofertar um mero brinquedo. Quando os pais ou os responsáveis presenteiam
a criança com a boneca que reproduz suas características físicas –
sistematicamente desprestigiadas e reputadas feias pela sociedade –
estimula-se o desabrochar da elevação da autoestima desta criança. E
muito mais, eu me atreveria ir além, a partir da conexão afetiva que a
criança desenvolve com a boneca, se encoraja o olhar de reconhecimento
da sua própria identidade. A pessoa não só aprende a se aceitar negra,
mas também aprende a se sentir bem sendo negra.
Pense um pouco, cara leitorx. Se uma criança, um jovem, um
adulto ou um idoso negro não se encanta pela sua cor de pele, não se
afeiçoa a seu nariz, não aprecia a cor de seu cabelo e não consegue
identificar beleza alguma em seus olhos… Significa dizer, em outras
palavras, que esta pessoa não se sente confortável sendo aquilo que ela
é.
Para além de pensarmos, ingenuamente, que este é um
acontecimento absolutamente normal, é preciso refletir sobre o porquê
uma beleza tão diferente da nossa é a mais atraente e adequada, a ponto
de ser necessário reeditar a própria identidade. Enfatizo, contudo, que
não há nada de errado em querer se enxergar da maneira a qual se entenda
como sendo a mais agradável.
Entretanto, quando é necessário desconfigurar tudo o que se
é – “apagando” as marcas de sua natureza – em prol de alcançar outra
modelagem estética “mais desejável”; podemos concluir que isto já é um
sinal indicativo de que algo precisa ser urgentemente reavaliado.
E a boneca auxilia neste processo de empoderamento. A boneca ajuda quando ainda se é criança.
Qual de nós nunca se sentiu instigada, desde menina, a ter
que corresponder às expectativas de um padrão de beleza que não é o da
sua etnia? Conforme já foi dito: cor da pele, tipo de cabelo, espessura
dos lábios, tipo de nariz e por aí vai… Nesse contexto é que boneca
desponta como veículo didático e não verbal para comunicar a criança
negra várias informações tais como:
- Você é negro;
- Sua compleição física é bonita;
- Não há nada de inadequado e/ou inconveniente em ser negro;
- Ser negro é tão bonito quanto ser de outra etnia. Da mesma forma que pessoas com características físicas diferentes da nossa fabricam seus brinquedos de acordo com seus atributos estéticos; nós também produzimos bonecos negros que copiam nossa imagem e semelhança. Bonecos tão belos quanto o são os de qualquer outra raça;
- Se aceite. Se entenda lindo. Se enxergue bonito. Não há nada de errado em ser como você é.
A construção da autoestima negra é lenta e complexa. Não
porque negros menosprezem sua autoimagem “gratuita e espontaneamente” ou
porque tenham algum tipo de sentimento de inferioridade, mas sim, por
existir toda uma construção social deletéria em torno da estética negra –
esta, raramente é bela por si só e, em geral, é classificada como
“exótica”, acessória, coadjuvante e de segunda categoria –.
Pois bem. Dito isso, é aí que a boneca negra – efetivamente – cumpre seu papel enquanto “instrumento político”.
Uma coisa que percebi assistindo vídeos no Youtube sobre o
“Teste da Boneca” é que frequentemente diversas crianças até se
identificam como negras quando a psicóloga lhes pergunta se a boneca que
veem é parecida com elas. No entanto, me surpreendi no momento da
segunda pergunta: quando indagadas se achavam bonita a boneca negra, a
maioria replicou que era feia. Por outro lado, essas mesmas crianças,
uma vez questionadas acerca da boneca branca, unanimemente, responderam
que a achava bonita.
Em 2007, na Nigéria – país com mais crianças negras do que
em qualquer outro lugar do mundo – Taofick Okoya se chocou ao descobrir
que não havia disponível no mercado nenhuma boneca negra para dar de
presente à sobrinha. Em um país com cerca de 170 milhões de habitantes,
se constituindo a mais populosa nação africana, é absurdamente
incoerente pensar que não haja bonecas dotadas de características
étnicas com as quais suas crianças se identifiquem.
Pensando nisso, Okoya, em um gesto de coragem e de
empreendedorismo, lançou no mercado a linha de bonecas negras “Rainhas
da África”. A ideia de fabricar as bonecas se consolidou com mais afinco
depois que sua filha pediu para “virar” branca. A partir daí, Okoya
buscou a inspiração necessária para fazer com que a menina se tornasse
confiante em sua cultura e se sentisse pertencente às suas raízes.
As Rainhas da África são personagens fictícios criados para
contar a trajetória de princesas reais da História Africana. O grande
diferencial das bonecas é que sua indumentária imita o modo de vestir
recorrente na cultura do país. A origem das bonecas é facilmente
identificada através das roupas e dos acessórios. A meta de Okoya é de
lançar, futuramente, bonecas alusivas a outros grupos étnicos africanos.
De acordo com o site da empresa e sua fanpage no Facebook,
produtos tais como: livros, quadrinhos, músicas e séries animadas também
foram desenvolvidos. Tudo isso com a finalidade de propiciar o
fortalecimento da identidade africana.
Vale ressaltar que tal como a Barbie, as Rainhas da África
são esguias e magras. Além disso, a feição das bonecas não é totalmente
compatível com a fenotipia negra. Segundo Okoya, suas primeiras
modelagens eram mais encorpadas, porém não houve boa aceitação entre as
crianças. Então, se decidiu padronizar o corpo das bonecas de acordo com
o referencial esbelto. As Rainhas possuem o nariz, a boca e o cabelo à
moda da beleza Ocidental, tal como a Barbie. O empreendedor explicou que
pretende mudar este conceito, viabilizando a confecção de moldes mais
sofisticados – delineados com características africanas de maior
coerência com a etnia negra – tão logo que a marca tenha sua imagem mais
consolidada no mercado. Por hora, só é possível ofertar as opções da
linha atual. Ainda assim, considero ser um significativo avanço no
empoderamento negro, se comparado ao cenário anterior, de total vazio da
representatividade cultural preta.
Na Nigéria, a aceitação é enorme: as Rainhas ganharam o
coração do público mirim e já desbancaram a boneca Barbie na preferência
das meninxs nigerianxs.
Portanto, acredito ser de extrema importância para o resgate da
autoestima da criança negra, o contato permanente com a boneca que
reproduza – o tanto quanto possível – a compleição física de seu
respectivo grupo étnico. Creio que este poderoso instrumento político é
aliado estratégico que se traduz em ferramenta potencialmente
fortalecedora no processo de construção do empoderamento negro. É fato
que tal processo é percebido como lento e vagaroso. Entretanto, estou
segura e convencida de que, no final, terá valido a pena!Referências:
Website: http://www.queensofafrica.com/
Vídeo “Rainhas da África” – Retirados de: http://www.queensofafrica.com/
https://www.youtube.com/watch?
https://www.youtube.com/watch?
Fanpage:https://www.facebook.
Reuters: http://br.reuters.
Catraca Livre: http://catracalivre.com.br/
Estadão: http://www.estadao.com.br/
MSN: http://estilo.br.msn.com/
Record (Portal R7): http://noticias.r7.com/
Pesquisa Google: https://www.google.com.br/
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